Intermitências na cultura visual contemporânea: o postal ilustrado e a imagem recreativa
“Compreendendo a cultura visual contemporânea como resultante do jogo vivido entre as condições socioeconómicas, os avanços tecnológicos e as operações artísticas ao longo dos últimos dois séculos, perguntamo-nos: Quais as relações entre a imagem, a palavra e o real daí decorrentes? Quais as ligações entre os diferentes dispositivos do atual contexto mediático? Como caraterizar a interação entre as operações artísticas, o comércio social de imagens e os valores fundadores da instituição estética (arte/não arte, high/low, autor/espetador, original/cópia…)? Esta problemática encontra uma direção mais precisa na análise das imagens e dos usos do postal ilustrado ao longo das três primeiras décadas do séc. XX e dos anos 80, 90 e 2000 e ainda na recoleção das apropriações artísticas deste média, inseparável do advento da fotografia e da instalação de uma rede postal de comunicação mundial. Consideramos que, embora o arquivo científico em torno da iconografia coletiva se torne progressivamente extenso, nomeadamente com a afirmação de domínios epistemológicos que vão da sociologia do imaginário aos visual cultural studies, para apenas citar dois recentes exemplos, este não dispensa e pelo contrário torna premente uma persistente revisão da teoria da imagem, que tenha em conta diferentes aspetos do processo de tecnologização da mesma, iniciado no séc. XIX com a fotografia e o cinema, e que prossegue hoje com as realidades digitais e os ambientes virtuais da Web 2.0…. A revisão deste trajeto é elaborada no nosso estudo a partir das ideias de recreação e de remediação. A imagem recreativa corresponde a uma conceção paradoxal da imagem e da técnica enquanto entidades que seriam, por um lado, vocacionadas para “uma sensibilidade puxada à manivela”, retomando a expressiva fórmula de Moisés de Lemos Martins (2011), através de formas de alienação e de automatização, e por outro lado, favoráveis ao exercício da experiência e à afirmação da condição histórica, através de táticas de reinvenção, de rearranjo e de conserto. A noção de remediação, terminologia sugerida por Bolter & Grusin (2000) pressupõe um entendimento do complexo mediático contemporâneo enquanto um todo interdependente, unido por relações de colaboração e de hibridação não cronológicas, que entra em rutura com o linear esquema sequencial que distingue novos e velhos média. Uma cultura atravessada por táticas de recreação e de remediação é ainda, como o entreviu o visionário pensamento de Walter Benjamin (1991, 1992), uma cultura onde se instabilizaram as fronteiras entre as posições de autor e de espetador, os estatutos de original e de cópia, de high e de low, categorias artificiais de caráter normativo que se destinariam a legitimar o discurso da instituição estética, mas que se manteriam ausentes no âmbito da nossa travessia espontânea e quotidiana de polimórficas atmosferas visuais e que seriam, de resto, alvo das mais heterogéneas derisões artísticas, paradoxalmente hoje assimiladas por essa mesma instituição estética. O postal ilustrado, outrora protagonista das exposições universais, hoje omnipresente nos grandes centros policulturais de arte moderna e contemporânea – nas suas lojas, nas suas salas e nos seus espaços de ócio, como cafetarias, bares e restaurantes – insere-se na nossa problemática de modo especialmente pertinente: objeto entre a arte e o comércio, com imagens e palavras, veículo da fotografia e parente próximo do cinema, o postal presta-se tanto à exploração de uma estereotipia dos afetos como se oferece às artimanhas, aos truques e às montagens dos seus usuários. Não obstante o mal-estar generalizado que paira sobre as ideias de cultura, de imagem e de arte desde o início do séc. XX com a crítica às indústrias culturais até à atualidade com os ataques à sociedade do espetáculo de Guy Debord e à sociedade do simulacro de Jean Baudrillard, propomo-nos seguir a simples mas trabalhosa máxima proposta por Michel Maffesoli (1998) de “dire oui à la vie”, mapeando os intervalos de ação, os fragmentos de experiência e os pedaços de história coletados pelos mais conhecidos e mais anónimos, pelos mais excepcionais e pelos mais banais recreadores da imagem e refazedores do real”.
ANO
2013
AUTORES
Maria da Luz Correia | Orientadores: Moisés de Lemos Martins & Michel Maffesoli