Costa, P. D. R. da (2013). Entre o ver e o olhar : ecos e ressonâncias ecrãnicas

Esta tese de doutoramento propôs-se analisar algumas consequências psicossociológicas provenientes da sociação ecrãnica sobre o ver e o olhar, desde o ecrã-cinema até aos ecrãs de hoje (computadores, tablets e smartphones). Concluiu-se aqui que a transição da cultura letrada para a cultura visual se deveu, sobretudo, à sua progressiva ubiquidade, à evolução das formas de utilização e de interação com o objeto técnico ecrã, bem como à metamorfose dos seus conteúdos. Mas esse foi um processo que aconteceu em duas fases distintas: com o ecrã-cinema e com o ecrã-tv estávamos perante uma cultura mais de génese vertical, hierárquica, propensa a criar e a impor padrões — de vida, de moda, de pensamento, de ideologia. De um modo diferente, com o ecrãcomputador, e mais recentemente com os ecrãs-móveis (sobretudo smartphones e tablets), em rede, foi-se assistindo gradualmente à explosão de uma expressão cultural mais horizontal, menos hierarquizada, mais centrada nas singularidades individuais que tendem a dar lugar a pequenas comunidades de interesse e motivação. Pelo facto do ecrã interagir com a visão, e de esta se relacionar com a mente de uma forma diferente daquela que a sequência letrada e estruturada promove — já que consagra maior ligação entre o lado racional e o lado não consciente, entre objetividade e subjetividade — acaba por vir ao de cima uma expressão mais subjetiva e singular, nos indivíduos e nas comunidades (sobretudo nas tribos em rede). Associado ao desgaste provocado pelas promessas tecnopolíticas e a uma maior introdução no social do Eros devido à força feminina, este é, em parte, o resultado de uma certa e progressiva emancipação do homo-ecranis face ao projeto moderno (o da imposição vertical da razão, do objetivismo masculino e do materialismo). Mas as conclusões não se ficam por aqui. Depois de comparar indivíduos com diferentes tipos de interação ecrãnica — aqueles que usam apenas um tipo de ecrãs (monoecrãnicos) e aqueles que usam um maior número de ecrãs (hiperecrãnicos) — este estudo conclui que existem pelo menos quatro dimensões que revelam diferenças significativas e de importância acrescida para explicar o impacto do ecrã na vida dos indivíduos: são elas a dimensão da aprendizagem e do pensamento; a dimensão da memória e dos seus usos; a dimensão dos processos de socialização; e a dimensão dos processos de individuação. Na dimensão da aprendizagem e do pensamento, este estudo revela, através de certos indícios, que os hiperecrãnicos entrevistados (utilizadores assíduos de vários tipos de ecrãs – computador, Internet, televisão, cinema e tablets e smartphones) tendem a demonstrar, em relação aos monoecrãnicos (que usam quase unicamente a TV), uma maior capacidade de detalhar informação e de construir de forma mais autónoma opinião e informação — fazendo um maior uso do cruzamento de fontes; uma atitude mais crítica e mais analítica sobre assuntos coletivos; uma capacidade de aprendizagem assente numa lógica mais de génese intuitiva, conectiva e rizomática (num emaranhado de hipóteses); e, também, um pensamento mais icónico, recorrendo em maior número a metáforas e a alegorias como marcadores-base de memórias e ligações explicativas. Por outro lado, como em sociação hiperecrãnica os indivíduos vivem numa lógica de conexão reticular, mediada e hipersónica, tendem por isso a sofrer mais de ansiedade pelo imediatismo, força que gera maior tendência para a fragmentação (de laços, de sentidos, de relações, de conexões). Já na dimensão da memória e dos seus usos, este estudo verificou que a tendência segue para se transferir para ecrãs e sistemas informáticos aquilo que no passado se memorizava. Isto gera uma maior propensão para a libertação de memória psíquica, substituindo conteúdos sequenciais por ícones mentais que, por sua vez, tendem a remeter para a memória armazenada. Por um lado, esta dinâmica permite aumentar as capacidades de pensar em rizoma, conectar assuntos e pensamentos com base em ícones referenciais. Por outro, tende a empobrecer a memória e a criar uma maior dependência face à tecnologia para aceder a conteúdos. As ecranovisões constituem assim uma forte base para a constituição desta mudança: como funcionam mentalmente como ícones que permitem gerar associações (emocionais, afetivas, racionais, lógicas, etc.), tornam-se numa espécie de snapshots (sinapses icónicas) que apontam sentidos e direções, prontos para gerarem associações e emergirem à consciência através daquilo que na contingência se sobre-expõe — é esta a base do pensamento icónico-rizomático. Segundo esta conclusão, ganha-se na velocidade, na eficácia e na capacidade de (re)combinação de soluções, mas perde-se muitas vezes na profundidade, já que ganha espaço uma certa filosofia mais baseada numa teorização sem memória teórica, ou então usando uma leviana, inconsistente e fragmentária conexão. Por outro lado, na dimensão da socialização, os hiperecrãnicos tendem a recuperar certas lógicas comunitárias e mais livres da lógica economicista ‘relação-fim último’. Os níveis de partilha registados entre os hiperecrãnicos, sem interesses objetivos, atestam bem esta dinâmica. Se com o ecrã-tv existia um certo individualismo ecrãnico, com o ecrã-rede sobrepõe-se uma lógica assente num certo comunitarismo ecrãnico. E nesta transição do vertical imposto para o horizontal partilhado, os dados revelam um outro ganho de assinalar: em rede, numa lógica horizontal e mais longe da verticalidade imposta pelos mass-media, a vida, nos hiperecrãnicos, torna-se mais otimista do que nos monoecrãnicos (já que estes últimos, através sobretudo do uso acentuado da TV, sentem muito mais o peso das tragédias e dos terrores). Reina então, nos sentidos dos primeiros, uma força azul, a da ligação, do infinito e até do sonho, e muito menos a força do vermelho (do sangue, da tragédia, da notícia alarmante), muito presente nos monoecrãnicos. Por fim, na dimensão da individuação, constatam-se arquétipos com bases diferentes nessas duas formas de sociação (monoecrãnica e hiperecrãnica). Nos monoecrãnicos, o herói românticobarroco impõe-se como grande imagem de fundo. Nos segundos, por seu turno, o arquétipo de herói tende mais para a multiplicidade de formas, influenciando de uma forma mais plural e aberta os mais jovens: sente-se mais a presença do super-herói, amigo, justo, humilde, corajoso, lutador, bem disposto, otimista, confiante; do herói cientista-polícia, intelectual, racional, científico, mas que entra em cooperação com o intuitivo, sensitivo e emocional; do herói vizinho, um igual entre os comuns que, por alguma razão, mergulhou ou num mundo grotesco e fantástico, ou então que quer apenas viver a sua vida e tentar fazer, dentro dessa normalidade, algo de importante não para o mundo inteiro mas antes para os que o rodeiam; e por fim do herói grotesco, aquele que não é o ser perfeito, que tem algumas virtudes e alguns defeitos, muito menos estético do que os heróis habituais, habitualmente solitário ou que vive no subterrâneo. Por outro lado, o arquétipo do ecologista, também mais presente no hiperecrãnico do que no monoecrãnico, é uma resposta subliminar, e até inconsciente, face ao crescimento do arquétipo do ciborgue, que funciona como sombra do perigo que pode ser o excesso de hiperecranização. Demonstra-se portanto, através deste poder ecrãnico, transmitido e conferido através de diferentes sociações ecrãnicas, que existem mudanças profundas nas dimensões referidas. É deste modo que nasce uma dinâmica a impor forte pressão sobre as instituições base do projeto moderno (escola, relações interpessoais, estruturas económicas, trabalho e formas de cidadania), chamando à colação a necessidade de uma urgente renovação multidimensional. Caso contrário, estas instituições correm o risco de se tornarem desintegradas das estruturas e formas geradas por este poder ecrãnico avassalador.

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ANO

2013

AUTORES

Pedro Daniel Rodrigues da Costa