Visões da folia 3 – O Carnaval-instituição da Figueira

Entre chuva tocada a vento norte e um frio cortante, esbarrei com o Carnaval da Figueira, há quase duas décadas, na avenida atlântica, que acabava de se transformar num oásis de palmeiras ridiculamente débeis. Anos passados, o génio do oásis, voltou à Figueira, assumindo-a como uma das poucas cidades do país a gozar o Carnaval na rua. Vi nos jornais. E atestei in loco.

A Figueira que eu conheço é a dos gelados a derreter em noites amenas de verão (umas) ou cortantes de nortada, outras. Sempre com gelados. A avenida a espraiar-se de um lado e a serra a impor-se do outro. Isto no fim da infância, adolescência, idade adulta. Há-de deixar as suas marcas. Literatura na praia (a Casa Havaneza morreu), um mar como não há, o areal de Buarcos a desaparecer diariamente. Mas, bom, o Carnaval. Sábado. No lusco-fusco, o grupo de Teatro Caras Direitas esforça-se por animar o início da noite, ainda com preparativos de última hora, o bar a arrancar, meia dúzia de sócios e amigos a compor o cenário. Sigamos pela avenida, onde ainda se passa, bancadas vazias, um frenesim a desenhar-se. A noite é fria, mas, vá, as palmeiras não balançam. O primeiro evento é a apresentação das escolas de samba, pago a 2 euros o bilhete. O samba, esse, já se ouve, em batucadas, aqui e ali, um ensaio histriónico, a afastar o inverno. Falamos de Carnaval, mas podia ser uma qualquer romaria popular, tal a quantidade de doceiras, vendedores de balões, pipocas, farturas, o que for possível, que os últimos tempos não foram propícios à venda ambulante. Ainda não são 20 horas e no Fernando’s Hideway já se faz fila para entrar. As escolas de samba, essas juntam-se aos magotes na esplanada, entre sangria, cerveja e ementa para enfrentar a noite. O custo da entrada, percebe-se, é motivo de discussão: há quem defenda uma grade de cerveja e o passeio junto à praia, em substituição da bancada, enquanto a líder (já maquilhada a purpurinas) da Trepa Coqueiros faz as contas às despesas e esganiça-se na apologia do bilhete pago. Passa gente da Vai Quem Quer, da Tribal, dos Morenos, a Escola de Samba Costa da Prata pede café, as carrinhas da polícia começam a engrossar.

A minutos do aguardado desfile, as bancadas vão-se enchendo, ofuscadas pelos holofotes. Na praia, muitos são os que espiam o espetáculo à distância, vigiados pelos polícias. No meu primeiro Carnaval por aqui, o balançar de coxas arrepiadas pelo frio era todo boa vontade, este ano, institucionalizou-se. E com ele, os grupos de mirones, a espiar as meninas pelos buracos na rede. Há algo de extraordinariamente hierarquizado nisto tudo, desde as famílias que se juntam ritualmente à festa, entre o enfado e a curiosidade, até ao palanque para as individualidades, começando e acabando no que se vê das escolas de samba: um amadorismo transgeracional, recheado de regras. Mesmo o menos estruturalista dos não estruturalistas não pode deixar de prestar reverência a Michel Foucault e à sua “Ordem do discurso”. (Foucault, 1970/1997) São nítidas, as relações de poder (o poder autárquico, dos movimentos associativos) cristalizadas num capital simbólico (Bourdieu, 1989) que pouco se parece questionar. O que me faz pensar na origem transgressora do Carnaval (na folia, na sátira e no disparate) tão totalmente tomada por regras que o subvertem.

No domingo (dia de desfile) a fila para entrar é descomunal, família inteiras vêm de longe a pé, para o Carnaval da Figueira, velhinhos estacionam o banquinho de Fátima na calçada portuguesa. Que memorável domingo gordo, vestido a fantasia ou a roupa nova, sapatos apertados e algum tédio costumeiro. Se há espetáculo, é necessário vê-lo. A ele e amigos com quem não se conversa há séculos, já agora um algodão doce e um pouco de sol, o dia está lindo. Pode ser que razão tenha George Simmel, ao aludir ao poder triturador da metrópole, à sua competência para a impessoalidade. Parece que as palavras do autor foram escritas para o que aqui se observa: “De um certo ponto de vista, a vida fica infinitamente mais facilitada no sentido de que os estímulos, os interesses e a afetação do tempo e da atenção surgem de todos os lados e conduzem-na por um fluir que pouco ou nada exige dos indivíduos” (Simmel, 1997, p. 43).

Mas a cidade também será a polis constituída por indivíduos com capacidade de agenciamento de Hannah Arendt (1958/2001). Nesta urbe, cabem manifestações culturais, que se revestem de relações de força e poder eminentemente políticas. Acontece que um corpo (bios e socius), como afirma Babo, continua a ser um corpo, com “a faculdade de incorporação, essa capacidade em aberto que permite um campo inexpugnado e inexpugnável de mutações: abertura do leque de sentidos, abertura das performances, abertura da memória e da inteligência” (2019, p. 189).

Por agora é noite, da festa programada da Figueira, ouvem-se os ecos ao fundo, a caminho de Buarcos. Na solidão noturna, há quem não prescinda dos hábitos de sempre: caminhada junto ao mar ou a cana apontada ao peixe. Na luz trémula, dois travestis rasgam o horizonte: cabeleira loura, fio dental, salto alto e o ar descarado de quem escandaliza, mesmo na noite de todas as folias. Viva o Carnaval!

Texto e imagens: Teresa Lima

Publicado a 06-04-2022

Referências

Arendt, H.,  (1958/2001). A condição humana (Tradução de Roberto Raposo . Relógio d’Água.

Babo, M. A. (2019). Culturas do eu – configurações da subjetividade. ICNOVA. https://www.icnova.fcsh.unl.pt/culturas-do-eu-configuracoes-da-subjectividade/

Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico (tradução de Fernando Tomaz). DIFEL.

Foucault, M. (1970/1997). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro de 1970 (tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio) Relógio d’Água.

Simmel, G. (1997). A metrópole e a vida do espírito. In C. Fortuna (Ed.), Cidades, cultura e globalização – ensaios de sociologia (pp. 33-45). Celta editora.

 

 

 

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