Viseu e Raymond revisitados
Em outubro de 2021, desloquei-me a Viseu com o propósito específico de assistir a um espetáculo. Desprezando a complexidade da cidade de interior, pensei (mal) que bastaria estacionar pelo centro e perto de tudo estaria. À minha arrogância de habitante de grande cidade, interpôs-se o espaço público. Corri desenfreadamente pelas ruas do centro histórico, mas cheguei atrasada ao Teatro Viriato e fui impedida de entrar. Não tive outro remédio senão deambular ao calhas, inspirando o ar outonal que, perto da Serra, refrigera os pulmões. Segurava, ainda, na mão o bilhete que, contraditoriamente, a funcionária do teatro me entregou, ao mesmo tempo que me fechava o acesso à sala. Na altura, estava no processo de ver e rever o filme Caminhos Magnétykos de Edgar Pêra, pelo que me senti como Raymond, divagando pela cidade, feita de sombras, cores e pensamentos misturados.
Regressei a Viseu em novembro de 2024, por motivos profissionais. Circulando pelo não-lugar do Instituto Politécnico, não pude deixar de dar um salto ao centro da cidade, na pausa para o almoço. Eu queria confrontar-me com o espaço urbano, depois da deambulação infernal de 2021. Coincidentemente, dias após, a RTP2 repôs Caminhos Magnétykos. Voltei, por isso, a Viseu e ao filme com o mesmo intervalo de tempo. Nem a cidade era a mesma, nem o filme me provocou as sensações iniciais. A constatação estimulou-me uma viagem à psicogeografia (Sidaway, 2022) de uma cidade e de um filme, que registo através deste ensaio.
Subo até Viseu e a cidade devolve-me o progresso uniformizador: rotundas (tudo começou aqui, se bem me lembro), shoppings e centros empresariais às portas da urbe. O Politécnico fica fora e dentro do centro. A dois passos e junto a uma zona residencial. Por isso, temos os bares, os fast foods habituais e uma certa descaracterização que povoa alguns campi país fora. O quotidiano, não obstante, é um convite a que nunca se resiste, mesmo com tempo contado. Inicio um périplo rápido pelas ruas forradas a folhas outonais, interpretando os sinais da urbe. Há casas abandonadas e novas habitações aprazíveis. Que seduções pode esta cidade conter? Restaurantes, que são tabernas ou bistrôs, que acenam com o cosmopolitismo, a partir dos produtos locais. Glocalization (Roudometof, 2016) gastronómica e cultural, portanto. Haverá um autêntico a desenhar-se, não conseguimos é ver o mapa completo, por enquanto. Sento-me. Prato vegetariano, em terras de vinho (o Dão), cabrito, pasteis de Vouzela. Engulo e salto para a rua. Lá está a praça junto à Câmara, por onde passei a correr há três anos. Quase me deixo ir, mas o meu caminho não é esse e estou atrasada (de novo). Terá que ficar para outra altura. Sigo, assim sendo, pelo Parque Aquilino Ribeiro, onde estudantes da escola em frente se juntam em grupo, a fumar ou a namorar. O espaço foi arejado com a denominação Parque da Cidade. Toda a estrutura do parque, contudo, remete para a tipologia de um jardim público de meados do século XX, com a fonte em pedra, a calçada em granito, o gradeamento em ferro fundido. Pesquisa posterior confirma a origem do conjunto, cujo nascimento remonta à Idade Média, mas que nasceu como parque público em 1955 (Direção-Geral do Património Cultural, 2011). Do outro lado da rua, a Escola Secundária Alves Martins assinala os 75 anos na fachada. Ainda ali permanece a citação de Salazar: “A escola é a sagrada oficina das almas”. Quase esboço um sorriso. Tal máxima presta-se a trocistas ambiguidades. Mas paro a tempo de me lembrar dos efeitos que produziu o sagrado ofício em gerações de alunos, a que felizmente escapei por pouco, e desvio o olhar para os sinais presentes.
O filme. Sim, Caminhos Magnétykos é uma adaptação de dois contos (A Tragédia de D. Ramon e O Conspirador) de Branquinho da Fonseca, que integram a coletânea que intitula o filme. Emendo com a frase do velho ditador e já vão perceber porquê. Tudo se passa num futuro distópico, na cidade de Lisboa, com o país tomado por um regime ditatorial. Raymond sacrifica a filha mais nova e os ideais da Revolução de Abril ao dinheiro. Catarina casa-se com um magnata do capitalismo, que, em plena boda, recebe uma chamada de Donald. Esse mesmo. Trump. Retenho, de Caminhos Magnétykos, a deambulação de Raymond, como num sonho, sem vontade, deixando-se ir, sendo tomado pelos acontecimentos e confundindo essas realidades com o seu drama pessoal. Em 2021, a Covid ainda provocava mossa e achei premonitórias as cenas dos drones, obrigando ao recolher obrigatório, num filme exibido em 2018.
Junto a essas primeiras impressões a visualização de 2024 e não me parece inteiramente o mesmo filme. Nem Viseu exatamente a mesma cidade. Há um grupo de dissidentes que faz explodir a Ponte 25 de Novembro (paródia do rumo da Revolução dos Cravos), Fernando Pessoa salva Raymond do afogamento. Em 2024, Trump voltou a ganhar as eleições e presto mais atenção ao personagem principal, quando invoca, nos seus monólogos divagantes, a loucura, a lucidez, a asfixia e a covardia, materializada em inação. E, como se tudo isto não fossem já sinais suficientes, temos a lenta escalada populista, que, em Caminhos Magnétykos, é um governante transformado em figura de Banda Desenhada, que pede que o deixem trabalhar.
Não sei de todo que cidade é esta, que visito instantaneamente. Dizem-me as varandas amplas deste prédio que pode ser um lugar em movimento. E qualquer padaria quente, de qualquer cidade do mundo é um abrigo, face ao frio agreste da nova e desconhecida urbe. Raymond parece-me, também, mais familiar. E Caminhos Magnétykos menos violento no seu jogo emocional. Lisboa são luzes desfocadas e Viseu prepara-se para mais um Natal, na sua austeridade renovada.
Texto e imagens: Teresa Lima (CECS/Universidade do Minho)
Publicado a 05 de dezembro de 2024
Referências
Direção-Geral do Património Cultural. (2011). Monumentos. SIPA. http://www.monumentos.gov.pt/site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=23881
Pêra, E. (Realizador). (2018). Caminhos Magnétykos. https://www.youtube.com/watch?v=mzIWEd_OFhk
Roudometof, V. (2016). Theorizing glocalization: Three interpretations1. European Journal of Social Theory, 19(3), 391–408. https://doi.org/10.1177/1368431015605443
Sidaway, J. D. (2022). Psychogeography: Walking through strategy, nature and narrative. Progress in Human Geography, 46(2), 549–574. https://doi.org/10.1177/03091325211017212
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Viseu
LATITUDE: 40.6565861
LONGITUDE: -7.9124712