Varsóvia II: N(d)o topo, uma ode ao verde!

Segundo Heller (2013), o verde acalma e, diante de um inquérito feito com alemães, constatou-se que, depois do azul, o verde apresentava-se como a cor mais preferida entre os sujeitos. No entanto, ao pensarmos nas cores como parte da cultura e sua respetiva dinâmica, pode-se inferir que esse inquérito possa não se enquadrar em nossos dias. Afinal, diferentemente dos seres não humanos, que levam as suas cores inscritas geneticamente, o humano desenvolveu habilidades e técnicas, passíveis para que possa se figurar com distintos tons e formas, quer guiado pela arte, quer por sua inspiração (Morin, 2005, p. 87). No mais, além dos ritos, mitos e religiões, temos no contemporâneo as forças das tendências, expostas/impostas pelo mercado, que se reprograma continuamente insuflando o consumo. 

Ao que noto, os corpos verdes ainda não entraram de moda e essa escolha talvez possa ser justificada se buscarmos a teoria das cores defendida por Goethe, a qual foi rejeitada por falta de provas, assim como suas críticas à Newton. O literato defendia a teoria da formação das cores apoiando-se nas sensações e, para ele, em oposição ao vermelho está o verde, considerado como “modesto, e pequeno-burguês” (Heller, 2013, p. 449). Essa condição da cor por ele expressa é passível para refletir, inclusive para imaginar quais os grupos contemporâneos que estariam alinhados e interessados em se associar a essa cor. Ainda cabe pensar sobre a dilatada exploração do marketing em relação ao verde e a construção do greenwashing. Como essas campanhas interferem para anular o verde como representação ecológica? Será que o verde já alcançou o estado de significante vazio quando se trata da sustentabilidade? 

No contexto do ambiente urbano contemporâneo, os rankings continuam a classificar o verde como motivo de júbilo para suas comunidades. Em relação à Varsóvia, o Essential Living (2024) a inseriu em 9ª lugar como uma das cidades europeias mais verdes. No índice dos tópicos elencados confere-se que seu ponto alto está nas seis florestas que apresenta. Quanto aos seus nove parques e jardins referidos na concorrência, eles não chegam à metade dos que possui Paris, a campeã da lista. Nada é dito a respeito sobre os jardins verticais ou suspensos, mas, o pouco que vi dessa cidade, em especial, no jardim que cobre a Biblioteca da Universidade de Varsóvia, creio que essa rara joia verde mereceria ser um exemplo de referência nos rankings, e ser referida como vermelha, “o rei das cores” (Heller, 2013 p.449), se nos apoiássemos na teoria das cores defendida por Goethe!

As palavras e imagens aqui expressas pouco alcançam essa notável representação ecológica, pois, além de sua bela composição paisagística, amparada na diversidade de árvores, arbustos, flores e gramíneas, trata-se de um jardim que apresenta soluções integradas, contribuindo para manter a temperatura do ambiente interno da Biblioteca e manejar as suas águas pluviais. Estar no topo desse edifício é perceber os modelos que beneficiam a biodiversidade, e, explicitamente, é estar mais perto do céu, quer por conferir a materialização de ideias ecológicas, que foram ali exequíveis quer, por certo, por ganhar instantes preciosos, afastados do asfalto e da dinâmica acinzentada que, comumente, rodeiam e corroem a urbanidade. 

 

Figuras 1 a 4. Vistas do jardim superior

 

Esse jardim não é secreto, mas inspira essa sensação, pois, para lá chegar os caminhos foram levemente tortuosos. O Polish estava longe de ser o meu domínio, tanto quanto o inglês para os seguranças da Biblioteca, mas a linguagem, engrenagem motora que nos constitui como ser, se sobrepôs nessa tênue relação e vontade de lá chegar. Os gestos, cruzados com o olhar de agradecimento, valeram mais que palavras. Me disseram uma vez: só não se comunica quando o outro não quer e, naquele ambiente, diferente do aeroporto, por exemplo, a atmosfera esverdeada contribuía e convidava à interação. 

Os passos do segurança foram a senha para eu chegar ao elevador. Subimos. Quando a porta daquela câmara escura se abriu fui capturada pelo flash da luz natural. Bastaram dois passos para começar a perceber os contornos daquele fascinante e curioso jardim. Afinal, essa espacialidade pode ser entendida pela lente da heterotopia, defendida por Foucault (2013). É um contra espaço, uma utopia realizada, concretizada e situada no real. Como tal, também expõe as incompatibilidades. Custou-me digerir que há indivíduos que ali vão e largam para fora das lixeiras seus restos. E justo embalagens de fastfood vinculadas às grandes marcas globais. 

 

Figuras 5 e 6. Lixos e marcas globais

No todo, foi um encontro com um espaço que permite se isolar do solo e de seu entorno, garantindo uma exposição a um ambiente singular, que nos leva à contemplação do tempo de Kairós, pois ali temos marcado as passagens de cada uma das quatro estações. A luz dada às imagens captadas era matutina do final do verão, quando o verde ainda era incisivo e sobrepunha-se sobre os textos culturais ali implantados, como uma ponte de aço, ligando dois pontos do jardim, que a luz do sol resplandecia o seu tom prateado. As esculturas dos quatro intelectuais, inseridos sobre as pilastras postas no interior da Biblioteca, podiam ser vistos dali. A armação com vidro ali exposta permitia espreitar essa cena de cima, como um anjo no céu a observar o que se passava na vida terrena. Contornada por uma moldura de ferro pintada em verde, essa estrutura, semelhante a um basculante, dava luz para o interior da Biblioteca e, para os que circulavam no jardim, se abria como um campo de visão para os que se deleitavam no jardim. Esse ornato remete aos materiais explorados por Baudrillard (1969), como o vidro, um icônico modelo que, além de isolar e proteger um ambiente, permite, por sua transparência, vermos o seu interior.  Por sua vez, são as estruturas prateadas e o vidro em tom esverdeado as estrelas que endossam essa arquitetura. Nesse sentido, há outros (en)cantos com esses materiais no jardim que se conectam com a Biblioteca, como uma grande cúpula de vidro que, na parte interna, emerge como uma claraboia e, no exterior, ela é surpreendentemente envolvida por uma armação de graminhas a abençoá-la, protegendo-a. 

Figuras 7 e 8. Cúpula de vidro coberta

 

Figuras 9 e 10. Interior da biblioteca visto de fora 

 

Nesse jardim, podemos exercitar três dimensões visuais: uma míope, centrando-nos no coletivo de verdes e armações ali instalados, ou mirar ao longe, vendo no horizonte um coletivo de edifícios emblemáticos da cidade. A terceira lente é a do real, pois está relacionada às bordas limitadoras do jardim.  Com essa visão vemos os painéis solares no entorno e os terraços dos edifícios vizinhos, instalados do outro lado da rua, incluindo o próprio jardim instalado no topo do edifício da Universidade, de onde vi este, que então visitava. 

 

Figuras 11 a 13. Três dimensões visuais

 

Há outros cantos a explorar, como um platô de alumínio, com uma luneta, para de lá apreciar as margens do rio Vístula, que divide a cidade. Bem próximo desse canto, surgem duas longas escadarias, que se não fossem seus degraus, seria um divertido tobogã para escorregarmos e chegar mais rapidamente ao parque que se apresenta como um contínuo desse jardim suspenso, mas no solo. Ali se encontram outros labirintos, outras propostas, mais longe do céu, que é azul, e não verde. 

 

Figuras 14 a 16. Outros cantos a explorar

 

Por sua vez, quanto à questão de saber se o verde já alcançou o estado de significante vazio quando se trata da sustentabilidade, penso que estamos a atingir essa condição. Mas quanto mais é feito nesse sentido, mais precisaremos de jardins como esses, para lá recarregarmos nossas forças apoiadas em Goethe, ou seja, significando a nós próprios como modestos verdes. 

 

Texto e imagens: Cynthia Luderer (CECS/Universidade do Minho)

Varsóvia, setembro de 2024

Publicado a 02 de janeiro de 2025

 

O presente micro-ensaio constitui a segunda parte de dois micro-ensaios relacionados à Biblioteca-Jardim de Varsóvia, com a primeira parte estando disponível aqui.

 

Referências:

Baudrillard, J. (1969). El sistema de los objetos. Siglo XXI.

Essential Living (2023, 31 de maio). The greenest cities in Europe.  https://www.essentialliving.co.uk/blogs-insights/the-greenest-cities-in-europe/

Foucault, M. (2013). O corpo utópico: as heterotopias. Edições. 

Heller, E. (2014). A psicologia das cores: Como as cores afetam a emoção e a razão. Editora Garamond.

Morin, E. (1991). O paradigma perdido: A natureza humana. 5ª ed. Publicações Europa-América.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Województwo mazowieckie

LATITUDE: 52.2425648

LONGITUDE: 21.0247693