Varsóvia I: A biblioteca-jardim, na ótica benjaminiana

A descoberta da Biblioteca da cidade de Varsóvia é experienciada como um acontecimento verdadeiramente inesperado. Uma imagem ilustrativa de uma tal primeira impressão é-nos dada pel’ O jardim dos caminhos que se bifurcam, que aqui nos serve de preâmbulo, para evocar a biblioteca-jardim de Borges, esse espaço-tempo alegórico que se liga com diversos passados-futuros imaginantes:

 

O húmido caminho ziguezagueava como os da minha infância. Chegámos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados a seda amarela, alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu o terceiro imperador da Dinastia Luminosa e que nunca foi dada ao prelo. O disco do gramafone rodava junto de uma fénix de bronze. Lembro-me também de um jarrão da família rosa e de outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que os nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia… (Borges, 1995/2017, p. 129)

 

Entrar na biblioteca de Varsóvia não corresponde, em rigor, a transitar de um lugar exterior para outro interior, mas simplesmente a passar e a retermo-nos nessa mesma passagem. Limiar entre o oriente-ocidente, o passado-futuro, a Biblioteca que se descobre nas traseiras da Universidade é um edifício quase-transparente, intensamente sugestivo das ruas-galeria de que nos fala Benjamin (Coles, 1999), descrevendo a experiência da modernidade, nas metrópoles europeias, na transição do século XIX para o século XX. O vidro e o ferro dão corpo à estrutura da cúpula da Biblioteca, reportando à outrora descrita Galerie Colbert, e outras ruas-galeria, pela mão de Walter Benjamin (2006). Na rua, como nos sugere o autor, descobre-se, nestas passagens cobertas, um lugar de fruição e de passeio que convida à transformação do olhar sobre a paisagem urbana, composta de todo o tipo de estímulos e apelos:

 

A maioria das passagens foram construídas em Paris nos quinze anos que se seguiram a 1822. A primeira condição para o seu desenvolvimento foi o apogeu do comércio dos tecidos. Apareceram então os armazéns de novidades, os primeiros estabelecimentos que passaram a ter em permanência depósitos consideráveis de mercadorias. Estes são os precursores dos grandes armazéns (…) As passagens são centros para o comércio das mercadorias de luxo. Com vista ao seu desenvolvimento, a arte entra ao serviço do comércio. Os contemporâneos não deixam de as admirar. Durante muito tempo permaneceram como uma atração para os turistas. Um Guia ilustrado de Paris diz: “Estas passagens, recente invenção do luxo industrial, são corredores com tetos de vidro, com entablamentos de mármore que correm através dos blocos inteiros dos edifícios cujos proprietários se solidarizaram com este tipo de especulação. Dos dois lados da passagem, que recebe a luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que uma tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura”. Foi nestas passagens que teve lugar pela primeira vez a iluminação a gaz (Benjamin, 2006, pp. 11-12).

 

Também a biblioteca-jardim de Varsóvia se afigura como um micro-universo sensitivo, em particular um corpo híbrido que justapõe natureza-cultura, dentro da cidade. A aproximação faz-se, primeiramente, pela imponente fachada exterior. A fachada do lado da rua Dobra tem um carácter monumental sob a forma de oito painéis (4 x7 m) encimados por um friso com a inscrição Biblioteka Uniwersytecka. Os painéis, que simbolizam páginas de livros, apresentam excertos de textos, com referências, culturais e musicais: a antiga Exposição polaca das virtudes de Jan Kochanowski, os antigos Romances do passado russo do início do século XII, o Fedro grego de Platão, o Livro árabe dos animais de Al-Jahiz, o Livro hebraico de Ezequiel, o Rig Veda sânscrito e duas notações: matemático-física e musical (do Estudo em si-bemol de Karol Szymanowski). A cor predominantemente verde antecipa a visão do jardim no telhado, em parte prenunciada pelos seus reflexos na vidraria contígua (Biblioteca-Jardim de Varsóvia).

 

Figura 1. Fachada da Biblioteca-Jardim de Varsóvia (2011)
Créditos: Henry Pisciotta / Penn State University Libraries Architecture and Landscape Architecture Library (CC-BY-NC-2.0)

 

Lateralmente, deparamo-nos com uma dupla transição: da cidade para a passagem-átrio da biblioteca – onde se encontram comércios, um quiosque, uma banca de vendas na ‘rua’ interior, um alfarrabista e ainda jardins verticais (fazendo lembrar as criações originais de Patrick Blanc), tudo isto perfazendo uma mini-cidade às portas da Biblioteca – e desta para o interior-exterior da Biblioteca-jardim. Este átrio intermédio configura uma espécie de ante-câmara, meio escondida, literalmente designada, conforme website oficial «Passagem». Já aí, uma esmagadora escadaria, rumo à Biblioteca propriamente dita, aguarda-nos. Um equipamento de deteção de metais, semelhante aos dos aeroportos, e um guarda fardado, advertem-nos, com o seu linguajar em ‘polonês’, de que o acesso é sujeito a apertado escrutínio. Apesar de ser muito incomum encontrar em Varsóvia, nos serviços ou comércio, quem fale inglês, o que também ali se confirma, conseguimos perceber que se exige cartão de estudante ou algum tipo de documento que autorize a entrada. Exibindo o crachá do congresso na Universidade, a decorrer ali bem perto, percebe-se, em troca, um gesto do guarda, que dá luz verde para avançar. Um roll-on junto à sua secretária indicia um encontro de Oftalmologia (pelo que se consegue ler, em inglês) a ocorrer naquele dia, precisamente na Biblioteca. Arregalando os sentidos, qual formigas a avançar seguindo mimeticamente um carreiro de corpos que conquistam, assertivamente, a amplíssima escadaria, enfrentamos um livro aberto de bronze patinado com a inscrição Hinc Omnia. No topo das escadas que conduzem à sala de catálogos, erguem-se quatro colunas de betão com esculturas de Adam Myjak, representando eminentes filósofos polacos da Escola de Lvov-Varsóvia: Kazimierz Twardowski, Jan Łukasiewicz, Alfred Tarski e Stanislaw Leśniewski. Extratos de textos das suas obras decoram as colunas, revestindo-as (Biblioteca-Jardim de Varsóvia). Percebe-se, assim, no imediato, que a Biblioteca é uma passagem de um estado de olvidamento à reificação de uma memória coletiva. Imaginar a Biblioteca de Alexandria, arquétipo da biblioteca universal, do ideal de armazenamento do conhecimento, e da fragilidade desse conhecimento, torna-se uma inevitabilidade.

 

Figura 2. Entrada da Biblioteca-Jardim de Varsóvia (2024)
Figura 3. Escadaria de acesso à Biblioteca-Jardim de Varsóvia (2024)
Créditos: Cynthia Luderer

 

Figuras 4 e 5. A “mini-cidade” da Biblioteca (2024)
Créditos: Cynthia Luderer

 

Já no piso superior, a estoica escalada inicial culmina numa ampla área multiusos onde se observam desde uns belíssimos móveis metálicos, ao estilo dos antigos ficheiros (embora recriados com um design moderno) que serviam para a meticulosa pesquisa dos arquivos dos livros, documentos ou outras publicações, que se imaginavam num gigantesco depósito, a uma área com prateleiras geometricamente alinhadas e intercaladas por mesas de estudo, as quais se estendem até às janelas ao fundo. Abundantes feixes de luz pintalgam a ambiência, não apagando completamente o tom solene que a generalizada quietude sugere. Observam-se ainda salas de estudo, semi-delimitadas por vidro. Por todo o lado, encontramos jovens, sozinhos e em grupo, ora lendo, ora sublinhando cadernos com o que parecem ser marcadores do tipo Stabilo. São amplos os espaços livres ou desocupados, parecendo ter sido desenhados simplesmente para dar lugar à respiração e ao vaguear tranquilo do corpo. Do mesmo modo, todo o edifício parece convidar a diferentes usos, a múltiplas formas de passar e de estar. Inesperadamente, deparamo-nos, por exemplo, com um conjunto de puffs no chão, acompanhados de mantas. Uma jovem, apesar da temperatura mais do que amena não o justificar, mostra-se enrolada num desses aconchegos, numa posição deitada e lendo descontraidamente um caderno de apontamentos, erguido ao alto, de baixo para cima. A inusitada imagem de uma confortável cama para cães ou gatos de estimação atravessa-nos a mente, suscitada por uma tal surpreendente e divertida visão. À medida que exploramos o edifício, vamo-nos apercebendo de que não estamos apenas numa biblioteca, mas num espaço verdadeiramente interior-exterior, em aproximação a uma estufa ou a um jardim de inverno. Subindo uma escada em caracol que nos proporciona uma sensação vertiginosa e amplia a visão, tanto de cima para baixo como o seu contrário, descobrimos os interstícios do magnífico jardim no telhado e a relação com o universo vegetal intensifica-se. No segundo andar, a casa de chá oriental é um dos ex-libris da biblioteca a destacar:

 

Um lugar especial é o Chashitsu Kaian – um pavilhão de chá tradicional japonês, doado em 2004 pela empresa Kyoei Steel ao Departamento de Estudos Japoneses e Coreanos da Faculdade de Estudos Orientais da Universidade de Varsóvia, e colocado no 2º piso da Biblioteca. Desenhado por Teruhito Iijima, o pavilhão e os seus arredores foram construídos com materiais naturais (madeira, bambu, papel, barro, pedra), tornando-se um exemplo, raro fora do Japão, da arquitetura tradicional deste país. No local, realizam-se aulas universitárias dedicadas à cultura japonesa, à cerimónia do chá, apresentações e workshops abertos de chanoyu (Biblioteca-Jardim de Varsóvia).

 

Figuras 6 e 7. Ficheiros metálicos (2024)
Créditos: Cynthia Luderer
Figuras 8 e 9. Cúpula da Biblioteca e Puffs aconchegantes (2024)
Créditos: Cynthia Luderer

 

A cada passo, tropeçamos com a estatuária – abundante nos espaços públicos em Varsóvia – a coabitar com a natureza, evocando “os traços materiais da consciência interna, ‘o inconsciente do sonho coletivo’” (Benjamin, 2006, p. 171). As referências da cultura europeia de Leste habitam de braço dado com abundantes signos da cultura oriental, e mesmo indiana, assinalada esta última pela presença do busto de Mahatma Gandhi. Percorrer a Biblioteca é, pois, testemunhar a possibilidade de leitura com o corpo inteiro de um espaço que se oferece ele mesmo como um livro aberto, materializado em cada detalhe arquitetónico. Somos surpreendidos a cada recanto e por todo o tipo de micro-detalhes, acompanhados pela impressão de que o rumo a seguir não é absolutamente pré-definido, em jeito de um passeio por “… um pequeno labirinto dentro do grande labirinto que é a cidade” (Benjamin, 2006, p. 171). Ao mesmo tempo, dificilmente escapamos ao carácter grandioso e monumental da cenografia, reforçado pela gigantesca escala da nave central do edifício, sugestivo das imagens alegóricas imperialistas de outros tempos. A escada em caracol que simultaneamente nos atrai e intimida, disposta num dos cantos do palco principal, parece simbolizar na perfeição a impressão geral de vertigem que nos inscreve a meio caminho entre o passado e o futuro, a tradição e a modernidade, o inconsciente coletivo feito corpo, por um lado, e o sonho imaginante (Bachelard, 1960/1988), retemperador de um retorno à ideia universalizante de religação com a ‘natureza’, enquanto figura significante de uma tomada de consciência expansiva do humano, por outro.

 

Figura 10. Escadaria em caracol de acesso ao jardim (2024)
Créditos: Cynthia Luderer

 

Figuras 11, 12 e 13. Interior da Biblioteca-Jardim de Varsóvia (2024)
Créditos: Cynthia Luderer

 

Findamos a visita com o sentimento paradoxal de uma arrebatadora e melancólica experiência, tanto mais quanto esta nos empurra para trás e para a frente, deixando-nos fixadas num vaivém, na passagem ela mesma: a luz que atravessa o vidro indicia a antecipação de um futuro imaginado, figurado sob a forma de uma imagem-desejo que no interior-exterior da Biblioteca se faz visível.

 

Helena Pires & Cynthia Luderer (CECS/Universidade do Minho)

Varsóvia, setembro de 2024

Publicado a 26 de dezembro de 2024

 

O presente micro-ensaio constitui a primeira parte de dois micro-ensaios relacionados à Biblioteca-Jardim de Varsóvia, com a segunda parte estando disponível aqui.

 

Referências:

Bachelard, G. (1960/1988). A poética do devaneio. Martins Fontes.

Benjamin, W. (2006). Paris, capitale du XIX  ͤ siecle. Éditions Allia.

Borges, J. L. (1995/2017). O jardim dos caminhos que se bifurcam. In J. L. Borges, Nova antologia pessoal. Quetzal (pp. 122-137).

Rendell, J. (1999). Thresholds, passages and surfaces: touching, passing and seeing in the Burlington Arcade. In A. Coles (Ed.), The optic of Walter Benjamin. Black Dog Publishing Limited (pp. 168-195).

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Województwo mazowieckie

LATITUDE: 52.2425648

LONGITUDE: 21.0247693