Thessaloniki: ordem e ruína
À chegada a Thessaloniki (Tessalónica), no fim de tarde do dia 30 de agosto, as primeiras impressões são impregnadas pelo ar irrespirável, abafado e poeirento, além dos tons pardos das vistas que vão desfilando diante dos meus olhos, em jeito de um monótono travelling, na viagem do aeroporto para o ABC Hotel (que espero encontrar destacado ao alto e situado numa rotunda, a julgar pela desanimadora fotografia no website do booking). O taxista, conduzindo de máscara, leva as quatro janelas abertas e o rádio ligado nas alturas. Nas tabuletas de beira de estrada ou letreiros dos armazéns comerciais e outros, o alfabeto grego acentua a passagem para um novo território, físico e imaginário (Mons, 1998). É ainda a caminho do hotel que as varandas dos prédios me chamam a atenção. Não só porque as vejo por todo o lado, como também porque se percebe que são verdadeiras extensões da casa, ora mobiladas, ora ocupadas por todo o tipo de objetos, quase sempre cobertas com toldos. O cenário remete-me levemente para a paisagem urbana de Barcelona, ou mesmo da costa adriática italiana, fazendo-me pensar que o tempo quente certamente justifica a frequência e uso das varandas, levando à sua transformação em salas de exterior. No dia seguinte, de passeio pela baixa da cidade, haveria de comprovar esta primeira impressão, observando moradores sentados à varanda. Recordo em particular uma mulher fumando um pesaroso cigarro, com a expressão de quem se instala no camarote de uma sala de espetáculos, observando o animado bulício da rua.
Thessaloniki é uma cidade renascida depois da sua quase completa destruição. Entre 1900 e os anos 50, a cidade foi sujeita a vários planos de ordenamento, depois de consecutivas guerras e incêndios. O edificado dá-nos uma sensação de multiplicidade de linguagens, recordando-nos a herança histórica da cidade. O traçado das ruas, por sua vez, é regular e desenhado com base numa planeada esquadria do início do século XX, de influência francesa. As vias principais, sob a forma de largas avenidas, são movimentadas e o trânsito automóvel barulhento e imparável. Milagrosamente, por toda a parte sobreviveram igrejas otomanas, de formas arredondadas e feitas, ao que parece, de pequenos tijolos. Pertencendo à Macedónia, Thessaloniki é expressão de um visível encontro de culturas, incluindo a cultura judaica e outras culturas contíguas, além de vestígios romanos, bizantinos ou pós-bizantinos. A cada passo é possível tropeçar numa ruína ou ser surpreendido por um monumento, em alguns casos reconstruído. Já no seu Projeto das Arcadas ou Passagens (Das Passagen-Werk), Benjamin discutia o carácter ambíguo de coabitação, nas grandes metrópoles de então, do passado com o presente, do arcaico com o moderno, manifesto na arquitetura, mas também nas múltiplas formas de expressão da cultura material. O colecionador, figura avançada por Benjamin enquanto metáfora do indivíduo semi-detetivesco da modernidade, afim ao flâneur, tem por vocação lutar contra a aparente desordem e dispersão do real, impondo-lhe o sentido das conexões e das afinidades que o exercício de combinação, catapultado pela observação detalhada, mobiliza. Thessaloniki apela, precisamente, a uma tal experiência de reconstituição do sentido que se esconde para lá do aparente efeito de haussmanização, o efeito de aparente transparência que o novo traçado torna mais evidente. Que forma poderá ter o atlas, topográfico e mnemónico, de Thessaloniki? Como desenhar a imagem da cidade (Lynch, 1960) perspetivada por quem nela se perde e/ou procura orientar? A que tipo de usos é votado o espaço público?
Numa das vias pedestres perpendiculares ao porto, e uma das mais movimentadas, pode notar-se que não é invulgar ver jovens de skate nas imediações ou mesmo no chão das ruínas, as quais parecem misturar-se com os edifícios mais modernos, assim como, por exemplo, tapetes de trapos sobre os muros, servindo de marcadores, à maneira de Goffman (1971), do “espaço pessoal” que é usado para tomar um copo ou dar dois dedos de conversa, entre amigos ou vizinhos. Também não é difícil encontrar cadeiras, trazidas de casa para a rua. A vida no espaço público, naquela rua como por toda a cidade, é particularmente agitada. O comércio é variado, abundando frutarias, pizzarias e lojas de todo o tipo de comida, incluindo comida turca (kebab), com balcão virado para a rua. Comprar comida, comer em andamento ou sentado de improviso em qualquer lado, é prática comum. Em Thessaloniki, o almoço pode prolonga-se pelas 14.00 ou mesmo 15.00 horas da tarde e o jantar pelas 22.00. Já com a noite avançada, a temperatura teima em não refrescar e o movimento na rua mantém-se como se não houvesse cancelas sobre a animação geral. Já no porto, uma multidão de basbaques deleita-se por ali sentada ou a desfilar, de corpo dado com o Mediterrâneo. No mar, quase parado, com exceção de uma ou outra ondulação mais agitada, duas embarcações-simulacro, imitando modelos arcaicos, aguardam por turistas. Vejo que numa delas estes se encontram em friso, pendurados numa espécie de cerca lateral, excitados e prontos para o tour, ao som de música disco, altíssima, que ao que parece faz parte do pacote de animação. Ao longe, avistam-se alguns navios de mercadorias. Tiro uma ou outra fotografia, encantada com a luz de final de dia que parece conferir à visão os tons difusos e a misteriosa atmosfera de um verdadeiro Turner. No passeio que acompanha o recorte do porto, improvisam-se espetáculos de rua, desde música a dança tradicional.
À ampla visão distendida a partir da varanda do meu quarto no hotel, num dos andares superiores, deparada com um traçado regular e aparentemente despojado de mistérios, sobrepõem-se os quadros da vida quotidiana que o mergulho nas ruas e praças permite experienciar. O poder do olhar de cima para baixo parece concorrer com o poder da descoberta de (in)coerências outras, percebidas a partir de dentro, do interior do corpo da cidade. Benjamin (2003) alertara já para a alternância entre estes dois tipos de domínio sobre o espaço, os quais têm diferentes efeitos no modo como são entendidas as transformações, as práticas e as forças que lhe são inerentes. As diferenças de escala, mais ou menos alheias à experiência sensível, são, assim, determinantes da compreensão e da consciência histórica. Pronunciando-se sobre a noção benjaminiana de “imagem-dialética”, Didi-Huberman (2000/2017) esclarece:
“Tal como Warburg, Benjamin colocou a imagem (Bild) no centro nevrálgico da «vida histórica». Tal como ele, compreendeu que esse ponto de vista exigia a elaboração de novos modelos de tempo: a imagem não está na história como um ponto sobre uma linha. Não é um simples acontecimento no devir histórico, nem um bloco de eternidade insensível às condições desse devir. Possui antes – ou melhor, produz – uma temporalidade com dupla face: o que Warburg aprendera em termos de «polaridades» (Polaritӓt) observáveis em todas as escalas de análise, Benjamin, por sua vez, acabaria por apreendê-lo em termos de «dialética» e de «imagem dialética» (Dialektik, dialektische Bild)” (Didi-Huberman, 2000/2017, p. 115).
Em particular, a forma de Thessaloniki (ou a sua imagem) é facilmente percebida na sua polaridade histórica, como uma morfologia dinâmica que nos faz viajar nas diversas espessuras espácio-temporais, ao mesmo tempo voltada para um tempo arcaico, materializado nos destroços que a habitam, e para uma temporalidade anacrónica, manifesta através de “sintomas paradoxais” (Didi-Huberman, 2000/2017, p. 116), de ritmos e contra-ritmos: a arquitetura modernista, o frenesim de circulação, a arte urbana, o ócio, a ruína, o abandono…
Na parte alta junto às muralhas de Thessaloniki, na zona de Ano Poli, descobre-se uma outra camada da cidade. Dali se avista o horizonte que terá inspirado Aristóteles, enquanto ensinava Alexandre, O Grande (ou o Magno), antes de se ter mudado para Atenas. Tal visão suscita uma sensação de vertigem, física e intelectual, pois pisar o mesmo chão e avistar os mesmos horizontes que terão servido de ambiente envolvente ao pensamento do filósofo revela-se profundamente emocionante. Quem por ali passeia descobre uma muralha semi-reconstruída a partir de pedras caídas no chão, acimentadas e com as quais se reergueram partes da mesma, entrecortadas por pequenas casas, em geral de aspeto muito humilde, algumas abandonadas. Por ali proliferam também o graffiti, assim como, estranhamente, inusitados objetos pendurados nos portões, de significado indecifrável. Na rua vêem-se poucas pessoas. Muitas das casas ou se encontram de trancas às portas, de janelas cerradas, parecendo desabitadas, ou mesmo em estado de degradação acentuada. Neste ponto do passeio, impera a sensação de se estar num bairro social e os sintomas espaciais de degradação, fechamento, os graffitis, o espaço publico degradado, sublinham essa mesma sensação, mais tarde confirmada em conversa com os colegas urbanistas de Thessaloniki.
A entrada para a parte visitável da muralha encontra-se fechada e apenas sobra a fruição das vistas. Se as vistas amplas da planura que se espraia lá em baixo parecem expressar o corpo normativo e ordenado da cidade, cá em cima impera uma topografia fragmentária, um desalinhamento geral e ao que parece não-programado, circundando os destroços da muralha. A seguinte passagem, a propósito da segmentação dos fenómenos urbanos, ilustra esta mesma impressão:
Retomando a metáfora benjaminiana, podemos dizer que, se de cima a evolução do território parece singularmente coerente, a observação a uma escala meso-analítica produz a fragmentação de um fenómeno em diferentes campos disciplinares, cegos entre si. (Gribaudi, 2021, p. 103)
Perto da entrada da muralha, uma taverna chama-me a atenção. Na varanda, coberta com uma ramada, encontram-se alguns locais a acabar de almoçar. Há ventoinhas no teto da sacada. Reparo em particular num padre (a julgar pelo vestuário, da igreja ortodoxa), que se encontra numa mesa conversando com uma mulher. A tasca é decorada dentro e fora, com ilustrações e objetos vários sem conexão, mas dando uma sensação estética interessante como que revelando uma cultura milenar, feita de tantos restos, à imagem da cidade, de desconexões que resultam numa interessante impressão de atordoamento civilizacional. As cadeiras de bunho apelam igualmente ao meu olhar. Penso de imediato na cadeira de madeira pintada de vermelho e assento igual que tenho no hall de entrada de casa, ao mesmo tempo que viajo até à Cadeira de Van Gogh com Cachimbo, pintada em 1888. Do outro lado da rua, há mais uma fila de mesas e cadeiras, sem clientes. O calor dificulta o passeio e a frescura combinada com a sombra, na sacada, são convidativas.
Na companhia de Isabel Marcos e Ole Møystad, com quem tomara um táxi rumo à colina, sentei-me ali mesmo, na esplanada, a fim de tomar um copo. O indivíduo que serve à mesa tem ar de poucos amigos e parece contrariado com a ocupação da mesa. Ainda assim, acabamos por pedir um típico vinho Retsina, água mineral, e azeitonas pretas, servidas embebidas em azeite. Ali passámos uma tranquila hora e meia, enquanto Ole recorda, por associação, os tempos passados em Beirute, reconhecendo similitudes com a atmosfera envolvente.
Descida a colina a pé, com o Mediterrâneo ao longe no campo de visão, a mesma ambiência e a sensação de esvaziamento da vida de rua servem-nos de companhia. Apenas aqui e ali, de longe a longe, se veem um ou outro jovem, empoleirados num pedaço de muro e deleitados na apreciação das vistas. É já final de tarde e o pôr-do-sol compõe um postal ilustrado, com subtis variações de luz.
Texto e imagens: Helena Pires, Isabel Marcos e Ole Møystad
Publicado a 28-10-2022
[A experiência de deambulação por Tessaloniki que aqui se descreve a uma voz é entrecruzada pela partilha pontual de um ou outro troço do percurso realizado por Helena Pires com Isabel Marcos e Ole Møystad. Assim, neste texto ressoam ensinamentos e impressões, designadamente sobre a história e urbanismo da cidade, adicionados a três mãos. Assume-se, por isso, a sua coautoria. Acrescenta-se que também as fotografias são partilhadas entre os campagnons de route… ]
Referências
Benjamin, W. (2003). Selected Writings, vol. I (M. Bullock & M. Jennings, Eds. & Trads.). Harvard University Press.
Goffman, E. (1971). The territories of the self. Relations in public, microstudies of the public order (pp. 28-61). Basic Books.
Gribaudi, M. (2021). Morphogenesis of urban space – the scars of a city. In N. Conceição, G. Ferraro, N. Fonseca, A. D. Fortes& M. F. Molder (Eds.). Conceptual figures of fragmentation and reconfiguration (pp. 101-129). UNL.
Lynch, K. (1960). A imagem da cidade. Edições 70.
Mons, A. (1998). A metáfora social. Imagem, território, comunicação. Rés.
LATITUDE: 40.6400629
LONGITUDE: 22.9444191