Tarifa (Fragmento #05)
Existem vários vizinhos perto de onde moro. Vizinhos à esquerda, à direita e também em frente. Na verdade, uns estão mais longe, outros mais perto, mas todos ao alcance da minha vista. Apenas uns são vizinhos permitidos e outros são vizinhos proibidos. Quem o define é a vontade humana desta sociedade que impõe fronteiras artificiais. Batalhas antigas, acordos antigos, decidiram que alguma linha imaginária haveria de separar uma nação de outra. É por isso que quando olho em frente e olho para o meu vizinho não sei se o posso considerar vizinho. Vivemos perto é certo, mas não nos encontramos lá fora, ele não me visita, e eu não o visito. Não nos encontramos casualmente numa loja ou no supermercado, não. Eu tenho o meu espaço, o meu vizinho tem o espaço dele e esses espaços não se tocam. Não se trata de uma questão de vontade, mas de impossibilidade. Sim, habitamos um em frente ao outro. Da minha varanda vejo-o às vezes na varanda dele a olhar para mim. Talvez com um sonho de querer passar para este lado da fronteira. Ou talvez não. Sonhe ou não, não pode. Existe uma fronteira fechada e ninguém a passa. É assim por vontade de alguns homens, não por vontade dos homens, e por isso esse vizinho não pode vir a minha casa, nem eu a casa dele. Mas olho para o lado e posso ir a casa do vizinho do lado ou ele à minha, simplesmente porque alguém disse que eu podia ir para o lado. Eu não posso ir em frente, por isso ao olhar em frente para a casa dele, questiono-me se terei um vizinho da frente ou se quem está à minha frente não é meu vizinho? Podemos comunicar, posso-lhe dizer adeus e ele poderá responder-me. Posso até fazer sinais de luzes em código morse. Não sei, talvez não, talvez a polícia secreta pense que estou a passar mensagens ao inimigo. O meu vizinho passou a ser meu inimigo apenas porque calhou eu viver nesta casa e ele em frente, mas de lados diferentes da vedação. Se ele batesse à porta da minha casa, eu abrir-lhe-ia a porta. Pergunto-me se o contrário aconteceria. Tenho muitos vizinhos, mas aquele é o meu vizinho da frente. Quando vou à varanda, eu olho em frente, não olho de lado. É em frente que naturalmente olho e é para o vizinho da frente que regularmente olho. Talvez um dia esta vedação vá abaixo. Talvez nesse dia possa ir a casa dele e ele à minha. Ou encontramo-nos simplesmente algures e bebemos um café ou um chá, como bons vizinhos. Se calhar até jogamos um jogo de damas ou de xadrez como se vê os vizinhos fazerem nos filmes. Hoje está nevoeiro, não vejo o vizinho da frente. Não vejo a casa, não vejo nada para lá da vedação. O meu mundo neste momento acaba na vedação. Talvez seja isso que acontece com as vedações. Impõem nevoeiros que nos cegam. Já nem vejo o vizinho da frente, mas sinto-o. Vizinho ou não-vizinho, é quem está à minha frente, é quem está mais próximo.
Publicado a 24-11-2022
Ficha técnica
F#05
Tarifa (03.10.22 ; 18:10)
36º 00′ 23,41”N ; 005º 36′ 30,49”E
Gravação no caminho que liga a Isla de Tarifa a Tarifa. Gravado virado a Sul, é possível ouvir o som do Mar Mediterrâneo à esquerda e o som do Oceano Atlântico à direita.
Para saber mais:
O Vizinho da Frente (5 vizinhos em 5 Fragmentos)
Ficheiros audio
O Vizinho da Frente em Tarifa
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: AN
LATITUDE: 36.006503
LONGITUDE: -5.608469