SUPORTES DO VIVER NO MUNDO

 

O que existe está aquém do que pode existir.

(Santos, 2001, p. 20)

 

Recentemente, lendo uma tese (Von der Weid, 2014) que estuda as capacidades perceptivas em pessoas cegas (que me levou a adotar o termo “suporte” no título deste pequeno ensaio, para me referir as nossas capacidades perceptivas), deparei-me com a narrativa clarividente da jornalista Joana Belarmino de Souza, Professora do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba. Uma narrativa que parece ser sobre sua própria infância. Joana relata a descoberta feita por uma menina cega de sete anos que, mesmo familiarizada com o quintal de sua casa, um dia esbarra em uma pedra conhecida e se machuca. É sob o impacto dessa experiência dolorosa que a menina percebe que não vê o mundo do modo como os não-cegos veem, e, passado algum tempo, se questiona: se não vejo como os outros, “o que vê a cegueira?”. Para ela, sua cegueira sempre lhe tinha garantido um modo próprio de ver o mundo:

“Dentro da sua cegueira, (a menina) compreendeu que sempre vira com o corpo inteiro. Via com os pés, que lhe indicavam as mudanças de solo; via com as mãos, com a face; via por todos os poros do seu corpo e continuava vendo todo um espetáculo interior que habitava o seu íntimo, a sua mente, e dialogava com o mundo exterior de um modo próprio, o seu modo de ‘ver’.
Percebeu como a experiência da cegueira acha-se ela própria ‘imunda’ de visão, e as tantas vezes em que tivera vergonha disso, as tantas vezes em que negaceara essa visão olfativa, auditiva, todos os ‘órgãos de ver’, espalhados por seu corpo a fora e que lhe tinham sido revelados pela lição das pedras” (Berlamino, 2000).

As ciências e as literaturas têm fartos relatos sobre como as pessoas superam dificuldades sensitivas, sobre como o organismo humano é integrado e capaz de se reorganizar a cada experiencia nova. E parece que estas dificuldades são desafiadoras não só para nós e nossa consciência, mas para o nosso próprio funcionamento cerebral. Alain Berthoz (2005) diz que nosso cérebro tem necessidade de regularidade, surpresa e movimento e que a surpresa é sempre um desafio para o cérebro e para nós mesmos. Tudo isso há tempos me deixa inquieta a respeito de nossas capacidades perceptivas, mas, sobretudo, sobre qual o futuro do ser humano, num contexto de diminuição das estimulações sensíveis, na vida cotidiana atual, e de risco, por isso mesmo, de desumanização dos seres humanos.

Sentimento de mundo, hoje

A vida atual  – tão excessivamente pragmática! – tende a nos fazer esquecer a potência de nosso corpo em sua capacidade de interagir com o mundo… Afastamo-nos de tantas capacidades conseguidas no curso da Evolução e que são nossos suportes de habitar o mundo, que muitas delas começam a  esvanecer, em nós: ver e ouvir com os pés, escutar o que dizem nossos poros quando se dilatam, se fecham… dar tempo aos olhos para registrar os tantos matizes de cores, luzes, sombras, com os quais a natureza nos presenteia; viajar através de odores evocados, aprender com o vento… O pior é que com esse distanciamento daquilo que estimula nossos sentidos, é nossa consciência de sermos-num-mundo com os outros, que também se torna fugidia. Isso, apesar de Anne Cauquelin dizer que construímos paisagem a cada esquina dobrada e de Merleau-Ponty falar que, com os nossos gestos, construímos uma mediação com o mundo (2008).

A Ciência, com Damásio (2017) e as Filosofias de Bergson (1999) e de Espinosa (1983), ensinam que, se não tivéssemos adquirido a capacidade do sentimento, muito provavelmente não teríamos evoluído como seres humanos.  E certamente, sem essa capacidade, o ser humano jamais teria criado as melodias. Afinal, as melodias é que são vitais. Jamais criaríamos um jardim, ou um lugar de encontros em uma cidade. Nem seríamos capazes de nos reconhecer a nós mesmos como seres de existência. Não existiriam as ricas culturas que a História da Humanidade registra. É justamente Damásio (2004), apoiado em Espinosa, que relaciona a homeostase, essa capacidade orgânica de preservação da vida, com a estrutura biológica dos afetos, com o sentimento.

Mas, em cidades cada dia mais iguais, povoadas de pessoas cujos comportamentos são também cada vez mais iguais; habitando equipamentos que nos escondem da vida e consequentemente negam a experiência no mundo; seguimos preferindo ser guiados (quase sem nossos corpos!), por qualquer comunicado que prometa vida prática, comodidade, rapidez, ganho de tempo. E não nos damos conta de que essa mesma vida prática e homogênea nos rouba justamente aquilo que estimula nossos sentidos, esses captores de mundo: o experienciar.

Esse modo homogêneo de ser nega que já sabemos o tanto que somos enredados na trama que garante o suporte para vivermos, para habitar o mundo. Esconde-nos o risco que reside em cada adormecimento de nossas capacidades sensíveis, levando-nos a arriscarmos de perder o todo de nós mesmos. Afinal, só uma imaginação artista, como a de Calvino (2011), consegue conceber que alguém como o seu personagem, o Visconde de Medrado, pudesse ser partido ao meio e seguir vivendo, se movendo no mundo. No entanto, o mundo se apresenta tão rico de estimulações sensíveis, tão radical para nossa existência, que o contrário deveria ser inimaginado. O filósofo italiano Roberto Casati diz que “a nossa visão é tão envolvida de claro-escuro que se nos apresentasse de um golpe, um mundo sem sombra, ele nos pareceria sem espessura, sem substância” (2000, p. 9).

Captores do mundo e senso comum

Por que, deliberadamente, diminuímos a parceria entre alma e corpo, nos tornando criaturas apenas mentais, se, por exemplo, o mover-se no mundo acontece porque adquirimos no curso da Evolução, o senso do movimento, que, inclusive, reúne a maioria dos nossos outros sensos? É verdade que poucos ainda se dão conta deste sentido, e muitos acham que se trata apenas de um maquinário com feedback: mova-se, perna! Mas não é simples assim. Segundo o prof. Berthoz (1997), com o senso do movimento atrelado ao senso auditivo, à visão e à propriocepção, o cérebro trabalha se antecipando, reconstituindo os movimentos do corpo e do ambiente, e usa a capacidade da memória para prever as consequências de uma ação, regulando-a e ao mesmo tempo estudando o movimento imaginado, pensando no futuro. E a propriocepção, esse senso que nos faz ter certeza de que somos nós mesmos existindo em um determinado lugar, ainda precisa do senso do tato, para que o ser humano se sinta ancorado em um mundo. Então, por que não deixamos nosso tato falar? Se, segundo Mattens (2009), Husserl já dizia que o tato, muito mais do que se vincular ao senso visual, seu compromisso é com o sentir. Se a pele é o nosso maior órgão, e em nada imediato, como as vezes parece imediata a visão, porque arriscamos perder algo que demorou tantos milênios para se concretizar, como a plasticidade do cérebro que garante aos cegos verem o mundo e aos surdos escutá-lo?

O que pode garantir que nos mantenhamos sensíveis?  Um caminho talvez seja destinar tempo e lugar aos afetos, à imaginação, às minúcias da vida, deixar fluir nossas impressões perceptivas, como praticam os artistas, já que a capacidade de nos afetarmos garantiu a sobrevivência dos humanos, como nos faz ver Damásio (2017).

Como Joelson Gomes e Dantas Suassuna (2011), talvez valha a pena seguir buscando na Arte uma provocação concreta à nossa capacidade de afetação, como na pintura de André Derain, e no paisagismo de Marco Navarra. André Derain, segundo Andy Pankhurst e Lucinda Hawksley (2015), em sua pintura Barcos no Porto de Collioure, de 1905, “impressionado com a luz na Costa de Collioure, imprimiu em sua arte o que viu e sentiu (…): pintou uma praia vermelha para exprimir o calor e o brilho do sol, rejeitando o senso comum de uma praia amarela” (p. 25).  Já o arquiteto Marco Navarra (2001), com seus colaboradores, imprimiu na paisagem real de um parque, o Parque Linear entre Caltagirone e Piazza Armerina, também na Itália, o mesmo sentimento de brilho e de presença do sol, aplicando um piso vermelho a uma via e realçando-a na paisagem.

Pode até parecer uma utopia, imaginar que a vida cotidiana se torne amanhã, mais importante do que os ganhos materiais, em um mundo onde importa o capital, e não os seres vivos. Mas, e se, como nos ensina Boaventura de Souza Santos, “Utopia” significar “a exploração, através da imaginação de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor, pelo que vale a pena lutar e que a humanidade tem direito”? (1995, p. 332).

Texto: Maria de Jesus de Britto Leite*

Publicado a 06-04-2023

Microensaio integrado na série Movimento.

*Professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento urbano da UFPE. Pesquisadora do LIARQ. Coordenadora do Centro de Estudos Avançados da UFPE.

Referências

Bergson, H. (1999). Matéria e memória. Tradução de Paulo Neves. Martins Fontes.

Berlarmino, J. (2000). O que vê a cegueira. Benjamin Constant. http://antigo.ibc.gov.br/images/conteudo/revistas/benjamin_constant/2000/edicao-16-agosto/Nossos_Meios_RBC_RevAgo2000_RELATO.pdf

Berthoz, A., & Recht, R. (2005). Les espaces de l’homme: Symposium annuel. Odile Jacob.

Berthoz, A. (1997). Le sens du mouvement. Odile Jacob.

Calvino, I. (2011). O visconde partido ao meio. Editora Companhia das Letras.

Casati, R. (2000). La scoperta dell’ombra: da Platone a Galileo: la storia di un enigma che ha affascinato le grandi menti dell’umanità. Mondadori.

Cauquelin, A. (2008). A invenção da paisagem. Martins Fontes.

Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes.

Damásio, A. (2017). L’Ordre étrange des choses. Lá vie, les sentiments, et lá fabrique de la culture.  Odile Jaboc.

Damásio, A. (2004). Em busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. Companhia das Letras.

Espinosa, B. (1983). Ética. Abril Cultural, Coleção Os Pensadores.

Gomes, J. & Dantas Suassuna, M. (2011). Olaria Ocre. Funcultura.

Pankhurst, A. & Hawksley, L.  (2015) Quando a Arte é genial. 80 obras-primas em Detalhes. Gustavo Gili.

Mattens, Filip. (2009) Perception, Body, and the Sense of Touch: Phenomenology and Philosophy of Mind. Husserl Stud (2009) 25:97–120. DOI 10.1007/s10743-009-9054-x

Navarro, Marco. (2006) Parque lineal entre Caltagirone y Piazza Armerina. Revista Paisea de Paisajismo. Periferia #011, p. 18-21.

Santos, B. d. S., Brandão, G. M., & Vianna, L. J. W. (2001). Por que pensar? Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 11-42. https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt#

Santos, B. S. (1999). Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez.

Von Der Weid, O. (2014). Visual é só um dos suportes do de do sonho (Tese de Doutoramento, não publicada). Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ).

 

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: PE

LATITUDE: -8.0578381

LONGITUDE: -34.8828969