Sous la ruine, l’île
Repete-se amiúde a ironia quando se conta a história do primeiro hotel cinco estrelas do arquipélago dos Açores: é mais visitado enquanto ruína plantada no coração da ilha de São Miguel do que o foi enquanto empreendimento turístico-hoteleiro de luxo aí erguido, durante os breves dezoito meses em que esteve aberto, entre 1989 e 1990. Construído na viragem das duas últimas décadas do séc. XX, o Hotel Monte Palace tornou-se hoje ponto de paragem para quem quer uma vista privilegiada para a Lagoa das Sete Cidades mas também para quem quer simplesmente percorrer os corredores esverdeados desta fotogénica ruína, interrompida por mais conhecidas e mais anónimas intervenções artísticas, mas em todo o caso, já reproduzida à exaustão nas redes de partilha de imagens como o Instagram e o Pinterest.
Construído junto ao miradouro da Vista do Rei (que assim se chama por ali ter estado, em 1901, o rei D. Carlos), o Hotel Monte Palace foi talvez fatalmente contagiado por essa vertigem do alto e do baixo a que a sua localização geográfica o destinou. Com cinco pisos, dois restaurantes, três salas para conferências, uma discoteca, mais de oitenta quartos e uma equipa de mais de cem empregados, o hotel foi, como se lia na imprensa da época, luxuosamente equipado com “coisa fina, coisa seleta — basta dizer que todo o material foi importado, desde as alcatifas aos móveis, desde os adereços aos mármores”.
Pilhado a partir do ano em que perdeu a sua vigilância, em 2011, o hotel foi rapidamente esvaziado da preciosa ostentação que ali esteve guardada durante duas décadas: elevadores, mármores, móveis, azulejos, tapetes… Quase nada resta neste edifício, vendido recentemente à promotora imobiliária chinesa Level Constellation, que agora tem servido como miradouro aos turistas e como lugar de diversas intervenções artísticas que vão de simples mas sugestivas palavras nas paredes como “nada”, “morte” ou “altura”, até gestos mais elaborados: da pintura mural que lembra o mosaico hidráulico que o catalão Javier de Riba ofereceu recentemente ao chão ao graffiti 3D que alguém pintou num quarto.
“Sous la ruine, l’île” lê-se também à entrada do hotel abandonado, em letras negras numa parede amarelada, a frase que lembra o velho aforismo do Maio de 68, “Sous les pavées, la plage”. E se a frase do Maio de 68 nos exortava a pensar no azul do mar que se agitava debaixo do pavimento cinzento da cidade, aqui o verde da vegetação ensolarada entra imenso pelas paredes escuras dos quartos de hotel. Projetado em 1979 pelo arquiteto Luís Almeida, o edifício foi pensado para dissimular-se na paisagem e a estrutura de betão foi desenhada para se confundir com a altura da montanha.
O objetivo não podia ter sido, ironicamente, mais conseguido: no Monte Palace, a escala da obra arquitetónica e do empreendimento humano apenas tem par no tamanho da ação da natureza e da passagem do tempo. Neste hotel, cujo insucesso se atribui recorrentemente ao nevoeiro que envolve as lagoas que teriam sido choradas por uma princesa de olhos azuis e por um pastor de olhos verdes, o artifício é toldado pelo espontâneo, o humano assombrado pelo natural, e o imaginário perturbado pelo real. Esta inversão da forma humana pelas forças naturais, ali tão presente, é, grosso modo, aquilo que para o sociólogo alemão Georg Simmel definia a ruína e a sua tragicidade.
Maria da Luz Correia, 01/2018
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Azores
LATITUDE: 37.8589492
LONGITUDE: -25.794498900000008