“Sem corrimão”: sobre a maratona da 10ª edição do Walk & Talk

We’re running out of time foi o título da maratona que o ilhas estúdio criou para a 10ª edição do Walk & Talk Festival de Artes  e que aconteceu no último dia do festival, dia 24 de julho. Nesta maratona, com 4 percursos pela ilha de São Miguel que iam de 3km a 42,4km, a multidão de quase 300 pessoas, que podia escolher entre a corrida e a caminhada, não exibiu as tradicionais dorsais com a identificação e o número, mas sim mensagens impressas que faziam referência à causa a que queriam dar voz. Da proteção dos oceanos à preservação da natureza, da defesa da igualdade de género à recusa de qualquer discriminação, das mensagens motivacionais às reflexões políticas, foram inúmeras as frases que – escritas em t-shirts e também pintadas no asfalto – percorreram a maratona, na qual participaram dezenas de associações ativistas como a UMAR Açores, a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel, a Associação Ecológica Amigos dos Açores, a Pride Azores, a A(MAR) Açores Pela Diversidade, entre muitas outras.

“Oh dear! Oh dear! I shall be too late!”. A frase do coelho branco da Alice no País das Maravilhas poderia ser outro mote desta corrida coletiva contra o tempo: desta vez, não estamos atrasados para um compromisso com a duquesa, mas sim para um processo de mudança social que envolve uma relação de maior empatia e uma atitude de maior amor, face à alteridade nas suas diferentes formas, diga esta respeito à natureza e aos seus ecossistemas, seja ela relativa aos grupos humanos e à sua diversidade. A contemporaneidade, marcada pelas figuras da duração e da urgência, seria, em todo o caso, mais expressivamente ilustrada pelo cronómetro que muitos destes atletas acionaram durante a maratona nos seus smartphones e smartwatches, do que pelo relógio que o coelho branco transportava consigo no romance de Lewis Carroll, que remeteria mais diretamente às ideias da aceleração e do progresso, próprias da modernidade. Hoje a dupla aceção da palavra portuguesa “tempo” ganha, de resto, uma irónica atualidade, convocando num mesmo vocábulo a urgência do tempo que passa e a crise do tempo que faz, a incontornável “crise climática”.

Apesar do sentimento de urgência, houve quem preferisse caminhar a correr: foi o nosso caso. No passeio que escolhemos, o trajeto de 7km entre o Miradouro da Vigia das Baleias das Feteiras e o Complexo Desportivo da Relva, preferimos caminhar, primeiro solitariamente na estrada que separa Ponta Delgada das Feteiras e depois coletivamente, no caminho de terra batida que separava o miradouro do complexo desportivo. Como o demonstram Wanderlust A history of Walking de Rebecca Solnit ou Marcher, une philosophie  do filósofo francês Frédéric Gros, assim como a densa rede de textos e a complexa teia de referências que reúnem em torno do tema, uma afinidade particular tem sido estabelecida ao longo do tempo entre a caminhada e o pensamento humano, nas suas diferentes esferas de ação – arte, literatura, filosofia, política. Do génio que caminha solitariamente, de que a figura novecentista do flâneur é uma das mais óbvias expressões, ao ativista que marcha coletivamente, certo é que também a história da caminhada, quando revista a partir de uma perspetiva interseccional, não está isenta de assimetrias históricas, bem manifestas nas linhas de privilégio que unem o rol de figuras que os trabalhos de Solnit e Gros, ambos excelentes, assinale-se, convocam: Nietzsche, Rimbaud, Rousseau, Thoreau, Wordsworth, Kant, Proust, Hölderlin, Benjamin, Baudelaire, Gandhi…

We’re running out of time, uma iniciativa que defendia a interseccionalidade como forma de olhar o mundo, e que juntava a arte, o desporto e a cidadania, assumia precisamente uma perspetiva crítica de tais assimetrias, não só divulgando no seu website vídeos sobre pessoas que uniram a prática da corrida aos direitos humanos como ainda oferecendo uma dorsal que ostentava o número 261, número da atleta Kathrine Switzer, a primeira mulher a correr a maratona de Boston no final dos anos 60. Ora, se tivéssemos de, num espírito semelhante, contribuir para a história integrada das práticas de caminhar e de pensar, poderíamos certamente  acrescentar-lhe novos nomes e diferentes episódios: a metáfora da “lenta caminhada das árvores” da escritora norte-americana Toni Morrisson, os passeios urbanos da flâneuse Virginia Woolf, omnipresentes em obras como o romance Mrs. Dalloway e recentemente repensados por Lauren Elkin, os comentários sobre a flânerie do escritor nigeriano-americano Teju Cole em romances como Cidade aberta, e, embora com uma relação não tão óbvia, as considerações de Hannah Arendt sobre o espaço do pensamento (desde o primeiro volume da última e inacabada obra A Vida do Espírito até à obra póstuma Pensar sem corrimão).

A proposta de uma “maratona visual”, no Walk & Talk – Festival de Artes, com diferentes percursos espalhados pela ilha de São Miguel, nos Açores, não se podendo alhear da condição insular e da experiência arquipelágica, teve ainda essa qualidade de opor as figuras da mobilidade, da conexão, da dispersão e da complexidade ao lugar-comum de uma “geografia simples”, da ilha como um simples “pedaço de terra rodeado de água”, facilmente visível, apreensível, domesticável, fotografável (Stratford et al., 2011; Baldacchino, 2019). No passeio fotográfico que fizemos, não alheio a um imaginário algures entre as pioneiras tentativas de Marey e de Muybridge de captar o movimento da corrida e os clichés turísticos do paraíso de hortênsias e de vacas felizes cercado de mar por todos os lados, procurámos, em todo o caso, seguir, intuitivamente, os vestígios da complexidade, os contornos turvos e os traços irregulares que já não recaem sobre “o mar misturado com o sol”, a imagem da eternidade para o poeta Arthur Rimbaud, mas antes sobre o mar confrontado com a terra, a natureza com o humano, desta vez, a imagem da urgência.

 

Ponta Delgada, setembro de 2021

Texto e fotografias de Maria da Luz Correia (CECS – Universidade do Minho)

 

Referências

Arendt, H. (2019). Pensar sem corrimão. Relógio d’Agua.

Arendt, H. (2011). A vida do espírito I. Pensar. Instituto Piaget.

Baldacchino, G. (2019). Island images and imaginations: beyond the typical tropical In J. Riquet & M. Heusser (Eds), Imaging identity text, mediality and contemporary visual culture (pp. 301-318). Palgrave Macmillian.

Cole, T. (2013). Cidade aberta. Quetzal Editores.

Carroll, L. (1866). Alice’s adventures in wonderland. Macmillian.

Elkin, L. (2016). Flâneuse: women walk the city in Paris, New York, Tokyo, Venice, and London. Macmillian.

Gros, F. (2009). Marcher, une philosophie. Carnets Nord.

Morrison. T. (1976, 4 de julho). The black experience; A slow walk of trees (as grandmother would say) hopeless (as grandfather would say). The New York Times. Retirado de https://www.nytimes.com/1976/07/04/archives/the-black-experience-a-slow-walk-of-trees-as-grandmother-would-say.html

Rimbaud, A. (1872/2010). L’eternité. In A. Rimbaud, Oeuvres completes (p. 169). Flammarion.

Solnit, R. (2000). Wanderlust: a history of walking. Penguin Books.

Stratford, E; Harwood, A; Baldacchino, G; Farbotko, C. & McMahon, E. (2011). Envisioning the archipelago. Island Studies Journal, 6 (2), 113-130. Retirado de https://ro.uow.edu.au/cgi/viewcontent.cgi?article=6404&context=scipapers

Woolf, V. (1925). Mrs. Dalloway. The Modern Library Publishers.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Açores

LATITUDE: 37.7883428

LONGITUDE: -25.7710659