Rua Direita (Estigma #01)

A portinhola fechou-se com o retirar da mão, produzindo aquele som metálico peculiar daquela caixa. Ele gostava daquele som que o ficava a acompanhar ao longo de uns quantos passos. Em todas as rondas, sorria quando via o número daquela porta. Enquanto o som ecoava entre dois pensamentos, foi retirando da sacola o molho seguinte, e quando dobrou a esquina, já verificava os destinatários.

António Ferreira, Rua Direita 15

Sara Antunes, Rua Direita 21B

Emma Frickson, Rua José Valle Nogueira Simões, 24

Diogo Rodrigues, Rua Direita 46, 2ºB

Também esta morada, da estrangeira, lhe dava vontade de rir. Está bem que o município decidiu mudar o nome da rua, para ficar com o nome do pai do atual presidente de Câmara, também ele antigo presidente. Sim, o José Valle, aquele que fez várias maroscas e acabou por construir uma bela mansão, lá no Morro da Boa Vontade, com aquela vista maravilhosa. Ainda teve que ir ao tribunal e foram lá os jornais, mas no final ficou com a mansão e com nome de rua.

Claro que ninguém chama outra coisa que não Rua Direita, a não ser quem chegue de novo. Mas mesmo esses, depressa percebem o verdadeiro nome. Os chefes ainda lhe dizem que ele deve incentivar os moradores a utilizar o novo nome, mas ele não concorda e faz que se esquece. Há nomes que ultrapassam o que está na placa. Aquela designação antiga é a alma da rua. Sempre assim foi. Rua Direita. Ainda que seja torta como o raio. Mas é o nome dela.

Quando era moço era ali que acompanhava a avó à retrosaria da D. Leonor, ou à mercearia do Sr. Zé. Lembra-se quando abriu uma loja de discos, ainda lá comprou uns quantos, ou melhor ia levantar o cheque-disco, para trocar por um disco dos Supertramp ou dos Marillion. Também era ali que ia comprar um saco de beijinhos e ficava sentado no banco a ver toda a cidade a desfilar, a fervilhar. Afinal, era a Rua Direita.

Agora era apenas uma rua, mais uma, cheia de carros a passar, cheia de lojas iguais a todas em toda a parte. Cadeias de roupa, perfumarias, lojas de latas de sardinha, que iam tentando sobreviver à concorrência do novo shopping que abriu na parte Norte da cidade. Pelo meio, alguns moradores resistentes, quase desistentes para os novos Alojamentos Locais.

Cada vez menos moradores, cada vez menos movimento de pessoas, cada vez mais carros.

A encomenda para o 46, 2ºB era volumosa. Tocou. Ninguém respondeu. Preencheu o aviso e colocou-o na caixa.

Saiu desse prédio e agarrou o molho seguinte. Rua do Forno.

Autor: Carlos Norton

Ficha Técnica

Som gravado com binaurais Roland CS-10 EM

E#01

Rua Direita (Portimão) (30.01.23 ; 10:44)

37,137950; -8,536883

Gravação em movimento pela Rua Direita.

Publicado a 08/03/2023

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