Rua da Vilarinha e Manoel de Oliveira
A Rua da Vilarinha, no Porto, é um empedrado melancólico e onírico na zona próspera da cidade. Estende-se da Boavista à Circunvalação (junto à zona industrial), sendo profundamente afetada pela evolvente, ainda que repouse placidamente na imutabilidade das suas características. Eu comecei por conhecer a Rua da Vilarinha como uma realidade simbólica, que ligava os documentos de arquivo do realizador Manoel de Oliveira à rua que este habitava. Talvez por isso, agora que a percorro, não possa deixar de sentir que corporiza um imenso plano-sequência cinematográfico, desligado do tempo e do espaço e indissociável das vivências do cineasta.
A poucos metros da Vilarinha estremece a Avenida da Boavista, pelo que a rua é fruto do contexto social, económico e cultural que a rodeia. Ali perto está o elitista CLIP (Colégio Luso-Internacional do Porto), o reconhecido Colégio do Rosário. É óbvio que as casas da rua são habitadas pela classe alta do Porto. Isto, se a palmilharmos no sentido Sul-Norte. Porque ao chegar à Circunvalação, a realidade é outra. Crescem as moradias de estilo contemporâneo, lado a lado com os casebres, as mercearias de bairro e a poluição automóvel, que é uma constante na Circunvalação. Trata-se de uma circunstância palpável, que não abala a vida da cidade (a sua estratificação e o fluxo ininterrupto que a forma), antes a confirma. O que se sente será algo distinto do factual. É a brisa marítima cujo odor quase impercetível nos cai sob a forma de nevoeiro no corpo. E uma espécie de fixação para lá do ritmo cronológico, que faz da Vilarinha um anacronismo. A dado passo, uma tasca sem letreiro, escura como uma gruta, com malgas e canecas de vinho, já com o tempero do almoço a sair porta fora. Aqui e ali uma fonte, uma porta florida, um silêncio. E a casa: escondida no arvoredo, protegida pelos muros altos, adensando o seu mistério. Nas primeiras imagens que vi da Vilarinha, a casa de Manoel de Oliveira erguia-se por entre o pinhal, numa zona com características de ruralidade. Exemplar da arquitetura modernista — projetada, em 1940, pelo arquiteto José Porto, com interiores de Viana da Lima e exteriores de Cassiano Branco — (DGPC, s.d.) foi concebida como uma utopia. A utopia de um cineasta, que idealizou uma casa sem arestas, mirando o poente, como um navio. Recorda Manoel de Oliveira que a casa era “maravilhosa” (2003/2019, p. 100), com janelas “extremamente abertas à luz e à paisagem” (2003/2019, 100) e paredes longitudinais “todas curvas e concêntricas” (2003/2019, p. 101).
Em 1982 (na mesma altura em que foi forçado a vender a casa), Manoel de Oliveira realizou Visita ou Memória e Confissões, criando um objeto artístico testamentário que, para António Preto, acabou por se tornar “profético” (2019, p. 19). Este é um filme de simbiose entre o cinema, a arquitetura e a vida. Tudo começa numa unidade individual (o corpo-morada), habitando uma casa que é como que uma extensão orgânica da vida, que cabe na arte da ilusão chamada cinema, o qual materializa uma história pessoal (as suas dúvidas filosóficas e espirituais, a sua possibilidade de expressão do sonho), através de uma técnica da projeção (espectral), manipulação de espaço que perdura no tempo, como a arquitetura. Refere António Preto que “a casa é um acumulador de tempos” (2019, p. 45). O que significa que, “falar de uma casa, pode, por isso, valer por falar de si próprio, e, no caso que nos ocupa, do próprio filme-casa de onde se fala” (Preto, 2019, p. 45).
Então, porque a intersubjetividade é imanente à interpretação poética (Bachelard, ano?), acontece que um filme sobre uma casa (um espaço, uma paisagem) pode confundir-se com uma vida individual, mas a apropriação que é feita por quem o usufrui transforma esse mesmo ato individual em memória coletiva (Halbwachs, 1968). Daí que, ao calcar o empedrado da Vilarinha, ao absorver o sol que chega misturado com a aragem atlântica, ao ouvir o chilrear dos pássaros que afastam o caos urbano do traçado, ocorra uma indecifrável osmose entre realismo e idealismo, matéria e memória (Bergson, 1939/1999), memória individual (autobiográfica) e apreensão coletiva do espaço. Para mim, a Rua da Vilarinha será sempre o sonho pessoal e artístico do cineasta Manoel de Oliveira, reavivado pelas novas sensações que experimento ao passear pela rua, neste dia específico. Como refere Bachelard “cobrimos assim o universo dos nossos desenhos vividos” (1996, p. 205).
A Rua da Vilarinha chegou-me por via de imagens a preto e branco (fotos da construção da casa), por cartões de visita de Manoel de Oliveira, pela correspondência que este recebia ou expedia. Posteriormente, a Vilarinha deixou de ser uma morada, para passar a ser uma casa, no filme Visita ou Memória e Confissões, exibido após a morte do autor, por sua vontade expressa. Talvez influenciada pelo lado espectral da película, circulo pela Vilarinha como se entrasse num espaço-tempo que não cabe no concreto da vida. O pinheiro chorão existe, ergue-se acima do portão enorme. Conhecer assim esta casa, pelo que é sugerido (o que está fora-de-campo) e não pelo visível, contribui para ativar a imaginação. Sendo assim, podemos construir a nossa cidade imaginária (que, para o caso, é uma rua) a partir deste ponto sensível: um muro que não deixa ver.
Prosseguimos por estas marcas de outrora, chegando ao ponto de fronteira da rua: a Igreja de S. Martinho de Aldoar (a Igreja da Vilarinha). Daqui para a frente, já os ruídos são outros (o silêncio é substituído pelo barulho de obras), até porque a Circunvalação quase se vislumbra e, antes desta, outras perpendiculares que rompem a quietude. No cruzamento da Igreja, breve paragem nas alminhas do caminho. Tão vulgares como tantas outras que povoam o nosso quotidiano, seja ele deambulante ou preciso. Mas o ato de parar para as ver, faz com que estas surjam como uma interpelação: “Vós que ides passando, lembrai-vos do que estão penando”.
Texto e imagens da Rua da Vilarinha: Teresa Lima
Imagem da Casa Manoel de Oliveira: DGPC
Publicado a: 13-05-2022
Referências
Bachelard, G. (1996). A poética do espaço (A. d. C. Leal & L. d. V. S. Leal, Trad.). Martins Fontes.
Bergson, H. (1939/1999). Matéria e memória (P. Neves, Trad.). Martins Fontes.
DGPC. (s.d.). Casa e jardim da Rua da Vilarinha, 431 a 475, também denominada Casa Manoel de Oliveira. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/341630/
Halbwachs, M. (1968). La mémoire colletive. Presses Universitaires de France.
Oliveira, M. d. (2003-2019). José Porto por Manoel de Oliveira. In A. Preto (Ed.), A Casa (pp. 100-106). Serralves – Casa do Cinema Manoel de Oliveira.
Preto, A. (2019). Manoel de Oliveira: a casa futuro. In A. Preto (Ed.), A Casa (pp. 18-49). Serralves – Casa do Cinema Manoel de Oliveira.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1687878
LONGITUDE: -8.6684063