Reterritorialização urbana | Um passatempo narrativo
Em um contexto social hiperacelerado, onde a ação responsiva vigora e o tempo contemplativo escorre por entre os dedos, permitir-se deambular, caminhar, observar, imaginar quadros da vida humana na urbe torna-se um ato simbólico de resistência.
Resistir não deixa de ser uma arte do fraco que, sem lugar próprio, desloca-se entre as fronteiras de dominação, com suas microliberdades. Este foi o pensamento inicial de uma proposta que surgiu em contramão à vida real acelerada.
A seguir, em um micro-ensaio com toque narrativo, inspirada em The Man of the Crowd (1840/1996) de Edgar Allan Poe, seguem notas sobre uma outra forma de explorar e (re)fundar o território citadino por completo. Uma união entre o flâneur de Walter Benjamin e o passatempo/desporto a partir do Geocaching.
Durante certos dias abri espaço para a vida imaginativa. Nela é suposto “conseguir ver o evento de uma forma muito mais clara: vemos uma quantidade de coisas muito interessantes, mas irrelevantes, que na vida real não chegariam sequer a alcançar a nossa consciência, que se encontra, de facto, infletida inteiramente sobre o problema da reação apropriada” (Fry, 2009, p. 61).
Adotei como ferramenta de trabalho um olhar contemplativo. Ajustei as lentes de visão para ser capaz de enxergar aquela beleza particular da circunstância, do costume. Adequei-me a um novo eu: “um eu insaciável do não-eu” (Baudelaire, 2006, p. 857), apreciador da própria vida, sempre instável e fugidia.
Foi quando resolvi caminhar sem um objetivo claro, apenas guiada por uma atitude: a da pura curiosidade abstraída da necessidade. Era tarde quente de verão em Vila Nova da Barquinha. Mais um dia naquele lugar que já era familiar para mim. Uma espécie de vento sufocante anunciava que a noite estava por se aproximar. Poucas pessoas pela rua, todas com a mesma aparência comum, seguiam seu caminho. A rotina e o quotidiano apresentavam-se ali, nuas e cruas, sem cor, sem forma, sem significado qualquer. “I was occupied in scrutinizing the mob” (Poe, 1996, p. 392).
Do outro lado da rua, por entre árvores que, em guerra com o clima local, persistiam em se manterem exuberantes no seu verde, surge um jovem homem. De aparência enigmática, com olhos que nada revelavam, parecia estar à procura de algo ou alguém. De estatura média, pele com marcas do tempo e roupas desportivas, olhou como um cirurgião para o chão. Minha observação naquele instante sofreu um golpe. O que haveria de tão interessante no lugar que suporta os pés da humanidade? Sem deixar qualquer explicação lógica, o homem partiu em caminhada.
“Then came a craving desire to keep the man in view – to know more of him” (Poe, 1996, p. 392-393). Fiz meus passos seguirem o estranho pelas ruas daquela cidade. Não me importei. Esta era a oportunidade de fazer um exame completo sobre a curiosa figura que havia cruzado o meu caminho. No entanto não foi necessário caminhar muito. Logo com alguns minutos, parecia que o destino daquele jovem tinha chegado. Virei meus olhos para onde os seus miravam e tive a primeira surpresa: o Hall of Fame do artista urbano Violant (imagem 1). Descendo aos detalhes, notei que após dedicar um espaço de tempo para observar o mural, sua atenção estava voltada para um local abandonado. Com a ajuda de um pequeno equipamento, o jovem parecia procurar algo que poderia ser grande ou pequeno, dado o seu olhar estar mais perdido naquele instante que o meu.
Após um espaço de tempo, o homem pareceu ter encontrado algo, uma espécie de caixa muito pequena. Retirou uma caneta do bolso, escreveu algo que não lhe tirou mais que trinta segundos de vida e saiu caminhando novamente.
Vila Nova da Barquinha, Santarém, inaugurou no ano de 2019, segundo informação da Câmara Municipal, o projecto ArTejo, desenvolvido em parceria com a Fundação EDP. Com 11 intervenções realizadas pelos artistas Vhils, Manuel João Vieira, Violant e Carlos Vicente, o programa foi idealizado com o objetivo de “democratizar o acesso à arte e permitir o envolvimento da população em novas experiências culturais”. Outras intervenções possíveis de serem vistas são as da imagem 2 e 3.
Segui. E seus passos nos conduziram até um outro painel. “The stranger paused, and, for a moment, seemed lost in thought; then, with every mark of agitation, pursued rapidly a route which brought us to the verge of the city” (Poe, 1996, p. 395). Foi então que notei como o território da Barquinha havia sido explorado de maneira ímpar e com a ajuda de um único equipamento. Questionei a mim mesma: será ele um homem que estava ali pela street art e seu aparelho o guiava única e exclusivamente para aquele roteiro cultural? Seria escusado segui-lo? Nada mais saberia a seu respeito? Foi então que consegui identificar o último objeto encontrado por ele. Uma caixa de tamanho 15cmx10cm, aparentemente feita de um metal com imã que guardou após alguns minutos e uma tomada de nota. O homem foi embora. Seu percurso parecia ter chegado ao fim. Não o meu.
Me aproximei do local e procurei a caixa. Fria. Metal. O fascínio que o homem despertara em mim, agora era substituído por uma caixa presa à uma estátua na rua. Que maravilha de lugar! Seria aquela a Caixa de Pandora? Encontraria eu a esperança de compreender a vida ao abrir aquela caixa desconhecida?
Arrisquei-me, num misto de curiosidade e fascínio. Dentro havia registos, números e códigos. Onde estaria a esperança? Sentei na relva. Dediquei tempo a contemplar aquele fim de dia na Barquinha. O ar sufocante havia sofrido uma mutação. Somente o ar? Fazia frio.
A caixa mencionada no excerto das notas de campo faz parte de um passatempo e desporto ao ar livre de nome Geocaching. Espécie de caça ao tesouro contemporânea, a atividade tem como principal objetivo dar a conhecer novos locais do território (urbano ou não) e descobrir pequenas invisibilidades do dia-a-dia em que geralmente ninguém repara. Não seria essa uma maneira de reterritorialização?
A proposta da iniciativa, criada no ano de 2000, completa a ideia de vagar por um território pelo simples prazer completamente descolado de uma necessidade que impõe tempo, limite ou (re)ação apropriada. O passatempo encaixa na ideia do flâneur, do prazer em estar na rua, de viver a multidão e observar curiosamente os mínimos detalhes do mundo ao redor. As invisibilidades. Aqueles detalhes que não saltam aos olhos da maioria que, imersa na vida ativa, não possui tempo.
Em qualquer lugar pode existir uma cache (imagem 4), uma caixa. Para isso são necessários três itens fundamentais: i) dispor da app em um telemóvel; ii) vontade de estar na rua; iii) um olhar atento aos detalhes.
As pistas para achar uma cache guiam o adepto pelo território. A cidade enquanto linguagem em perpétua mudança passa a ter seus pontos interligados. Há caches que, como esta da narrativa por Vila Nova da Barquinha, interligam a street art e revelam um pouco mais sobre os murais, os artistas e a ideia do graffiti. Outras podem conduzir o geocacher por uma infinidade de diferentes lugares, para dar a ver um espaço escondido da cidade ou uma bela paisagem.
Deslocar-se pelo território é inerente à condição de seus habitantes. Juntar fragmentos e conferir um significado único e novo à cidade pode ser compreendido a partir de uma pequena adaptação da ideia de desterritorialização e reterritorialização contida em Deleuze e Guattari (1997).
A desterritorialização implica uma ruptura, mudança. Uma vez que este movimento acontece, é necessário um reposicionamento por parte da pessoa, ou seja, implica em uma reterritorialização.
Num mundo de dissincronia, acelerado e pobre de sentido (Han, 2016), mas seguro e familiar, não seria um ato simbólico de resistência desterritorializar (a nível narrativo) o espaço em que estamos inseridos para territorializá-lo novamente, a partir de novos olhares e novas vivências repletas de mais significado?
Independente da ação, a “Caixa de Pandora” possibilita, sim, (re)elaborar uma narrativa de esperança: a de realizar um exercício de pensamento ao longo do território urbano com o auxílio de um passatempo e, assim, criar novos sentidos, fundar novos espaços. Desterritorializar para reterritorializar. À moda do flâneur.
por Thatiana Veronez
Braga, 09/2020
Referências:
Baudelaire, C. (2006). O pintor da vida moderna. In I. Barroso (Ed.), Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 853-881.
Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Fry, R. (2009). Um ensaio de estética. In V. Moura (coord.), Arte em Teoria – Uma antologia de estética. Ribeirão: Edições Húmus, 59-74.
Han, B.-C. (2016). O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a arte da demora. Lisboa: Relógio D’Água.
Poe, E. A. (1996). The Man of the Crowd. In P. Quinn & G. R. Thompson (Eds.), Edgar Allan Poe: Poetry, Tales and Selected Essays: A Library of America College Edition. New York: The Library of America, 388-396.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Vila Nova da Barquinha
LATITUDE: 39.461883
LONGITUDE: -8.436004