Registo do que esqueci: um passeio não-linear entre São Paulo e Rio de Janeiro

Fui uma criança com fortes tendências criativas. Do quarto até à cozinha, ia sozinha. Da cozinha até ao quarto, voltava acompanhada de um conto recém-imaginado que fazia questão de narrar aos meus pais: um diálogo com um macaco; um homem que carregava o mundo na cabeça; um lenço que sumiu porque se jogou, enquanto eu apenas assistia – “juro”! –, do décimo terceiro andar do prédio; um duende que dava cambalhotas na cama do quarto…

Vivi também um misto de infância curiosa e desordeira. Lembro do meu primeiro contacto com o computador. Uma máquina interessante, meio bege, meio cinza gelo. Grande e muito estimada por todos os adultos que passavam por ali. Muitas letras a apertar bem à minha frente. Um jogo do Mickey Mouse. Toda a utilização era feita sob supervisão, claro! Aquela experiência me cativou, mas somente isso não me interessava. Gostava mesmo era de desenhar ali, afinal, já não me era mais permitido colar minhas obras de arte, aos 40cm do chão, pelas paredes brancas de toda a casa. Um dia também não pude mais desenhar naquela máquina fascinante. Na minha curiosidade, magica e misteriosamente, a caixa de ferramentas do Paint desapareceu para nunca mais voltar. Seria ali o corcundinha (Benjamin, 2013, p. 102) me acompanhando? Nunca o vi, mas, se calhar, ele sempre esteve ao meu lado…

Na minha desordem (Benjamin, 1987) ou desarrumação (Benjamin, 2013) colecionei bolas de gude, chapinhas de refrigerantes, papéis enfeitados que nunca tive a coragem de colorir, adesivos… Colecionei também algumas memórias. Essas tenho comigo até hoje. Abro-as volta e meia, num ato de (re)memoração que a cidade parece me impor.

Da terra da garoa tenho fragmentos: uma cantina italiana em que eu cantava enquanto comia pizza, um túnel escuro em que passava, sempre carregada pelas mãos cuidadosas da minha mãe, para pegar o comboio. No fim de semana, havia a feira, com senhoras aos gritos, homens com facas e peixes na mão, sabor doce das uvas “rede globo”[1] e bancas imensas, irritantemente altas, em que nunca conseguia ver grandes coisas – uma frustração! Havia também o cheiro do pastel frito, que sempre comia com meu pai, e da cana passada por uma máquina em que saía um líquido esverdeado – eca! Ao longo da feira, posicionavam-se as vendedoras que “iam inspecionando em silêncio as filas de donas de casa que, carregadas de sacos e redes, procuravam guiar as suas crias” (Benjamin, 2013, p. 77).

São Paulo não é uma cidade para crianças. Não a considero assim. É cinza e há ali espaço para carros e motos, barulho, um rio de aparência suja que corta a cidade de “cabo a rabo”. Para não falar de um corre-corre frenético de pessoas com um ar sempre cansado. Essa é uma cidade que tem um ritmo que uma criança não consegue acompanhar e diante da qual não consegue se orientar.

Era uma São Paulo cinza e desconhecida que se estendia à minha frente à luz dos prédios e letreiros iluminados.[2]

Bom mesmo era quando eu entrava no carro e ia em viagem ao Rio de Janeiro. A estrada era longa, quase infinita, mas eu sabia que chegaria à casa dos meus avós. Ali era quente, com aroma a bolo e café na casa de uma, cheiro a serrim, parafusos por apertar e ovos estrelados na outra. Aquele movimento pendular entre Rio-São Paulo podia ser repetitivo/cansativo para os adultos, mas para mim era sinônimo de felicidade. Pela janela do carro, após longos períodos de sono, assistia a uma cidade que começava a aparecer por esse vidro-tela, revelando uma ambiência urbana diferente: pessoas com roupas mais casuais, sentadas em conversa. Praia e o barulhinho do mar!

Tornou-se claro aos meus pais, um dia, que nossa casa não era São Paulo. Eu, então, “teria de me despedir por longo tempo, talvez para sempre, da cidade em que nasci” (Benjamin, 2013, p. 61). Atenção! Essa mudança, para mim, não era algo ruim.  

Essa nova (não-tão-nova) cidade era um misto de um lifestyle descontraído e um frenesim típico de uma metrópole. As ruas mais afastadas do centro (onde os adultos trabalhavam) eram mais calmas. Ruas simples, de dimensão comum, onde viviam pessoas simpáticas. Fazia ali um calor de 40º graus que tornava a vida difícil.

Os dias começavam a ficar interessantes ao final da tarde, sempre depois do clássico “ó o padeeeeeiro” e da buzina que anunciava o pão doce quentinho. Era, finalmente, a hora da brincadeira. Na rua, os chinelos serviam de marcação imaginária para o golo. Quando não queríamos jogar futebol, era a hora da queimada ou brincar de elástico. A rua calma, de repente, virava um campo de guerra. Uma equipa para cada lado. Salve-se quem puder!

A noite chegava aos poucos e as crianças eram levadas para o interior das casas. Hora do jantar. Finalizado esse ritual, voltavam todos para a rua. Cadeiras postas no portão, os adultos sentavam-se numa roda para conversar. As crianças, sentavam-se no chão para brincar, até a chegada das histórias de terror narradas pela minha avó. “Correntes que se arrastavam pelas paredes dos quartos”, “o homem do saco preto que passava para levar os desobedientes” e por aí vai… Na hora de dormir “não havia para mim uma separação clara entre o mundo que de dia povoava as janelas e aquele que, de noite, esperava o momento certo para me assaltar nos meus sonhos” (Benjamin, 1985/1994, p. 195).

Se hoje for a esse local, suspeito que ainda haverá situações parecidas. As casas, com suas varandas, servem como fronteira para a cidade carioca. Essa foi apresentada para mim através das mãos maternas, que era a responsável por me levar às compras, ao médico, ao mundo que se desdobrava nos afazeres do quotidiano. O Rio de Janeiro é uma cidade grande e a pequena parcela dela que conheci, após a mudança de São Paulo, foi a parte da nova classe média. Espaços urbanos organizados e limpos, muitas árvores que faziam grandes sombras nas calçadas, avenidas amplas com casas grandes e alguns prédios mais baixos que os da capital paulista, varandas com cortinas bonitas e frescas, crianças que saíam das aulas e iam para casa de carro. Uniformes impecáveis no início do dia e já com as marcas da inquietação no regressar. Lojas com vitrines elegantes que exibiam a moda e o que as senhoras e senhores deveriam usar.

Não morei no Rio de Janeiro que aparece nos postais, nem no Rio de Janeiro violento. Visitei-o algumas vezes, em ocasiões muito especiais. Guiada pelo meu pai, via um senhor imenso de braços abertos no topo de um morro. “É o Cristo Redentor, filha”.

Nessa parte da cidade, que chamava de “parte-postal”, estavam as mansões das pessoas ricas “misturadas” nas casinhas apinhadas nos morros e coloridas durante o dia. À noite não se via as cores, pareciam mais luzinhas de Natal. Ai, que cidade maravilhosa! Por falar em Natal, geralmente essa era a época do ano em que eu visitava a sedutora e inebriante cidade-postal. Morei no Rio de Janeiro, mas ele só me pertencia durante 1 dia dos 365. Nesse caminho, vendo a cidade através da minha tela, era quando via moradores de rua, pessoas diferentes daquelas a que eu estava acostumada. Aquilo me chocava: como poucos podem viver com tanto e muitos com tão pouco? Um pouco estranha, selvagem e injusta essa cidade-partida[3] que divide os seus habitantes de uma forma tão profundamente (in)visível. Apenas quando cresci, me tornei adulta e me separei do corcundinha, é que conquistei a cidade-postal. Por pouco tempo. Dei adeus cedo ao Rio de Janeiro.

O ato de rememorar a cidade da minha infância em algumas palavras não é simples. Entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, há aqui, apenas um relato do que esqueci. Duas grandes salas de leitura, medium de reflexão, passagens-hipertextos que se desdobraram aos olhos dessa criança. É impossível existir linearidade na narrativa apresentada: uma criança se distrai na ambiência urbana criada por e para adultos.

Entre as experiências temporais, existiram experiências sensoriais. Evocou-se aqui essa recordação fragmentária, num duplo ato de desmontar-reconstruir a urbe, que considero suficiente para (re)abrir o acesso ao passado. Esse exercício tem sua cor e graça: é, à maneira de Benjamin, uma possibilidade de elaborar outros futuros – urbanos e pessoais – além daqueles que realmente ocorreram. Encontramos, assim, um novo universo citadino entre o sonho e a vivência quotidiana.

A infância tem um saber especial em nossas vidas. Esse é um período temporal em que existe uma razão própria e diferente de viver. Entre o lar e a rua, desenrolam-se sonhos e realidades desse mundo que se desdobra à nossa frente, que observamos atentamente/curiosamente, sempre acompanhados por um corcundinha que destrói as “conquistas” dos adultos.

Os monumentos e arquiteturas, os sons e luzes, as passagens e cenários são percebidos, nessa (re)memoração, numa dupla temporal, num entrelaçamento de passado e futuro, que acontece no presente. Na dinâmica temporal da infância, tal como retratado pelo autor alemão, não há linearidade, pelo contrário, há descontinuidade e intervalo. A cidade é percebida enquanto um labirinto e torna-se uma expressão da materialização da história. É percebida enquanto uma linguagem, um conhecimento. Não sendo percebida quotidianamente pelos adultos, vinga-se no presente, através das memórias de infância.

Vale ressaltar que a evocação da infância não se trata de verificar a materialização histórica num todo cronológico temporal (a criança tabula rasa vs. o adulto, seu aperfeiçoamento). A in-fância é aqui percebida como uma potência, o centro da memória histórica, uma (re)valorização do sujeito criativo, produtor de cultura, que oferece, através de um olhar-de-si enquanto adulto, sentido e significação ao mundo. A in-fância, lugar anterior à palavra (analisando-a por sua etimologia), constitui-se, então, nos moldes de Agamben (2008) e na percepção de Benjamin, num experimentum linguae: aquele que por ser anterior à linguagem observa o mundo enquanto tal, constrói o pensamento enquanto uma atividade criativa reflexiva. Compreende, enfim, a cidade como um medium, um órgão transmissor de textos quotidianos, sensoriais, múltiplos.

Convido-os, assim, à (re)memoração e a uma (re)visita: quais são as cidades da sua infância?

 

Fevereiro/2021

Thatiana Veronez

 

Referências:

Agamben, G. (2008). Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG Editora.

Benjamin, W. (1985/1994). Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense.

Benjamin, W. (1987). Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense.

Benjamin, W. (2013). Rua de mão única. Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

 

[1] A uva é do tipo “Red Globe”. São grandes, com polpa firme, bem doces e com grainhas dentro. Para a criança que fui, em confusão com a emissora brasileira, tornaram-se uvas rede globo.

[2] Benjamin, no original, diria: “Era uma Berlim escura e desconhecida que se estendia à minha frente à luz dos candeeiros” (2013, p. 178).

[3] Ver Ventura, Z. (1994). Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: RJ

LATITUDE: -22.9068467

LONGITUDE: -43.1728965