Quem vigia a vigilância?

Caminhando por Madrid, deparei-me com esta provocação. Uma intervenção artística urbana que faz pensar: quem vigia a vigilância e seus vigilantes? No mundo contemporâneo, o culto à imagem é total e há imagens de (quase) tudo. Estamos cada vez mais conectados em uma verdadeira aldeia global (McLuhan, 1964/1994), são abundantes os registros imagéticos diários produzidos

pelos mais distintos dispositivos, que viajam quilômetros em segundos pelas estradas sem fronteiras da web. Estes frames, em movimento ou não, espalham-se pelas redes móveis de comunicação e constroem uma teia de dados disponível a qualquer equipamento com sinal de internet. Tal como este exemplo de Madrid, somos vigiados permanentemente, senão por câmeras do governo estrategicamente instaladas, pelos demais olhos do grande irmão que agora não mais se limitam a uma fábula sobre um futuro distópico, mas cabem na palma de uma mão, prontos para vigiar e, por vezes, punir. O poder disciplinar é invisível, mas, paradoxalmente, impõe um princípio de visibilidade obrigatória. Os vigiados precisam estar em evidência, a “sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles” (Foucault, 1987, p. 156). A vigilância pelas ruas das grandes capitais é onipresente, nos inserimos em um contexto de complexo emaranhado comunicacional de um sem-número de vias que carregam informações de um lado para o outro.

O mundo imagético surge dos mais variados olhares que incidem sobre ele. “Vivemos com imagens e entendemos o mundo com imagens” (Belting, 2007, p. 14). O conjunto de percepções que registram a humanidade molda uma memória coletiva que constrói nosso entendimento sobre aquilo que nos envolve, seja por meio de nossos próprios olhares em tempo real sobre o cotidiano, ou a visão de outrem que gera uma peça artística a dar forma para um pensamento. As artes são terrores domesticados (Debray, 1993), e com a ajuda delas deciframos e multiplicamos o universo das imagens. Debray (1993) afirma que se olha para uma imagem de acordo com o que se é. O sentido a ser percebido de cada imagem varia conforme o contexto em que é apresentada, e a cultura, a bagagem de conhecimentos e experiências de quem vê. A verdade é que não temos domínio sobre as imagens. Elas podem, simplesmente, como em um passe de mágica, surgir ou sumir de nossa mente, fora de nosso controle, pois fazem parte do próprio corpo e são fragmentos de um imaginário pessoal e coletivo, que está ligado à consciência e, em consequência, também à sociedade onde se vive uma história coletiva de mitos.

Não podemos deixar de pensar que as imagens são momentos congelados ­— mesmo as gravadas em movimento — que remetem, tal qual uma ponte, a um tempo que já não existe mais, é imaterial e dele temos apenas recordações: o passado. As imagens são aquilo que sobrevive do tempo antigo, nosso elo com lembranças, sejam elas boas, más ou simplesmente indiferentes (Didi-Huberman, 2013). A vida é cada vez mais assistida por meio dos ecrãs, e dessa maneira se relega o presente. A gravação do acontecimento é o que fará recordar o passado em um futuro próximo. Este é um sintoma patológico das estruturas das redes sociais digitais, que dominam a passos largos a atenção da população. São grandes depósitos (ou réquiens) de memórias, rastros e restos (Gagnebin, 2006). Seus conteúdos são efêmeros, pois tudo é veloz no império dos algoritmos. Se, por um lado, funcionam como arquivo, estas plataformas também exigem frames do cotidiano em tempo real, que podem, ou não, transformarem-se em registros de momentos exatos que mudaram o mundo, ou talvez apenas um mundo, dentro do microcosmo de alguém que se viu afetado pelo acontecimento registrado.

A grande ironia é o fato de termos nossa imagem vista e reproduzida pela constante vigilância e, no entanto, os vigilantes não serem vistos. São anônimos, apenas vigiam de algum lugar no tempo e no espaço. Como observou Foucault (1987), a vigilância exige a invisibilidade do vigilante. Aí está a sagacidade do artista em planejar sua obra: naquela esquina daquele prédio na calle Pérez Galdós, enfim, alguém está vigiando a vigilância.

Texto e imagem: Vinícius Zuanazzi (Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho. Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil), e licenciado em Jornalismo pela mesma Universidade. E-mail: zuanazzivinicius@gmail.com)

Publicado a: 13-01-2023

Referências

Belting, H. (2007). Antropología de la imagen. Katz.

Debray, R. (1993). Vida e morte da imagem. Vozes.

Didi-Huberman, G. (2013). A imagem sobrevivente. Contraponto.

Foucault, M. (1987). Vigiar e punir. Vozes.

Gagnebin, J.M. (2006). Lembrar, escrever, esquecer. Editora 34.

McLuhan, M. (1964/1994). Understanding media: The extensions of man. MIT Press.(Trabalho original publicado em 1964).

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