Visões da folia 1 – Praia do Presídio, 2022: um Carnaval que não se consuma

As praias do Ceará (Brasil) durante o Carnaval são no geral tomadas por massas de foliões que fogem da Capital, Fortaleza, para quatro dias de festa. Um modelo de festejo de encher os olhos dos que advogam o despertar de Dionísio nas festas de rua: bebidas alcoólicas em grande volume, música alta por todos os lados, multidões nas ruas dedicadas à “glória da coletividade” (Caillois citado em Amaral, 1998, p. 38), num festejo caótico e desordenado cujo tema parece ser o próprio extravasamento coletivo. Um impulso carnavalesco que prepara os foliões para, como diz o bordão, o início de um ano de rotinas, obrigações e privações: “o ano só começa depois do Carnaval”.

Ainda que o ritmo de ocupação das praias do interior no Carnaval tenha abrandado na última década – à medida que outros destinos foram sendo traçados e que o Carnaval de rua de Fortaleza ganhou corpo, com a multiplicação dos blocos – estas são ainda espaços bastante disputados.

Nas praias contíguas do Presídio e Iguape, a 50 km de Fortaleza, há alguns anos, era preciso reservar com bastante antecedência uma hospedagem pra o período da festa. As casas de praia costumam ser alugadas por grupos de amigos e familiares. A rua era disputada entre os paredões de som, foliões em traje de banho e cobertos de amido de milho – ou sujeira pior, como a lama e o ovo podre – os carros, as caixas térmicas dos grupos que reservavam um pedaço de praça ou de calçada como base da folia, as muitas tendas e vendedores ambulantes de bebida e comida. Dentro do muro das casas, micro festas pareciam acontecer em paralelo quase que o dia inteiro.

Da praia para a rua, da rua para a casa. E, em algum momento, pousava-se no quarto para uma recarga de energia… Um breve período de sono, banho e muda roupa.

Nos passados dias 27 e 28 de Fevereiro de 2022, pleno domingo e segunda-feira de Carnaval, deambulei pelas ruas de ambas as praias. O que seria do Carnaval nesse terceiro ano de pandemia, quando já não se sabe até que ponto podemos festejar ou nos mantermos reclusos? Um decreto do governo distrital proibia as festas públicas no período, enquanto muito se especulava sobre o cumprimento ou não da ordem.

Refiz de carro e a pé alguns dos caminhos por onde outrora se espraiavam os foliões, partindo do Presídio rumo ao Iguape. Do Carnaval, se via e ouvia apenas o eco. A festa estava presente, distante, intercalada entre longos espaços de silêncio. Saíam do interior das casas e não mais dos paredões na rua.

Os foliões também estavam lá, mas já não bloqueavam a passagem nas ruas, nem sequer faziam volume nas calçadas. Eram figuras esparsas, com seus chapéus coloridos, lantejoulas, alguns com lama na cara e outros com camisetas de blocos em honraria à esbórnia, com nomes do tipo “Já tô bêbado” ou “Cachaça amuada”. Nos portões de algumas casas, concentravam-se pequenos grupos de amigos e familiares, bebendo, fazendo churrasco, ouvindo música em seus próprios aparelhos de som e se divertindo. No pequeno mercado de bairro, estavam lá os foliões recarregando seus stocks.

A decoração era de festa. Era tempo de festa. Era tempo de excessos, com bebedeiras e fartura de alimento, de esquecer da rotina do trabalho, de ouvir música alta, de estar junto. Mas a sensação daquilo era folga, era descanso e era convívio… Mas não parecia ser a festa.

No caminho da praia, cheguei a ver um grupo de jovens dançando e se amando ao pé de um paredão de som. O funk concorria com outros gêneros, como o forró e sertanejo, vindo de caixas de som espalhadas em pequenos grupos ao longo da orla. Era fim de tarde. A música e a bebida dividiam espaço com o futebol e as brincadeiras infantis.

Na segunda-feira pela manhã, a cidade estava ainda mais esvaziada que no domingo. Para além dos grupos que ocupavam a orla, algumas pessoas bebiam nos bares, como ocorre em qualquer interior em qualquer altura. À tarde, as casas abriram novamente as portas, voltavam as músicas, bebidas e cores carnavalescas. Até as caras banhadas de lama e amido apareceram, reunidas nas calçadas em frente aos portões de casas.

Até que ponto a festa estava presente? Durkheim, ao comparar a festa com a cerimônia religiosa, falava na efervescência que era suscitada, nos ritos e estímulos a um estado de êxtase e de gozo que se materializa em “gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, busca de estimulantes que elevem o nível vital” (Durkheim, 1912/1996, p. 418). As pessoas estavam distraídas de suas atividades e preocupações. O tema da festa estava lá, a música, a descontração, até mesmo os elementos estéticos, com as roupas e caras breadas.

O Carnaval, entretanto, se esquivou da rua. Em cada casa se fazia um micro-Carnaval. Pareciam encurralados entre a vontade de subverter a ordem oficial, de que este ano não haveria festa, e a necessidade de manter um distanciamento – ao qual nos acostumamos na pandemia. Mesmo na areia da praia, onde vários grupos se reuniam, não se tocavam. Não partilhavam sequer da mesma música.

Faltava algo essencial para a instauração da festa. O social, o comum, a partilha pública do momento festivo. Faltou a multidão transmutada em um corpo único, ou em vários corpos que se tocam e que se sentem, se amam ou se repelem violentamente. A festa ensaiava seus passos, tentava se erguer, mas não conseguia instaurar sua ordem própria, alheia ao quotidiano. Esbarrava no isolamento dos pequenos grupos.

Texto e imagens: Fábio Marques

Publicado a 04-04-2022

Referências

Durkheim, E. (1912/1996). As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália (P. Neves, Trad.). Martins Fontes.

Amaral, R. D. C. D. M. (1998). Festa à Brasileira-Significados do Festejar no País que ‘Não é Sério’. Tese de doutoramento, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-21102004-134208/pt-br.php

 

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