Pousar o olhar nos varais e fazer deles um “lugar” (à moda de Tuan)
Em dias ensolarados como este, penduradas em varais externos, com cordão ou arame, mais ou menos improvisados, peças recém-lavadas secam ao sol e vento. Calças, camisolas, toalhas, lençóis, peças dispostas numa ordem meticulosa e equilibrada, atenta à força e direção do vento, bem como à incidência do sol. Há toda uma arte de harmonizar a roupa de uma família numa mesma corda.
Podemos ler esse gesto como um índice de um esforço físico cuidado e rigoroso feito por quem estendeu a roupa, em geral mulheres, e como sendo o resultado material de uma gramática sociocultural e de moralidades (pública e privada).
Pousemos os olhos nos detalhes. É preciso saber pôr a secar a roupa em público. Há todo um sentido de bem estender, bem como de lavar e arrumar. Com base numa etnografia visual das práticas de cuidado da roupa em casas britânicas, a cientista social Sarah Pink (2007) mostra como as atividades domésticas respondem à necessidade de criar uma “casa” (no sentido de lar) e de as mulheres constituírem as suas próprias feminilidades e moralidades. Prestar atenção e dar conta dos detalhes triviais, ou pouco visíveis, da experiência quotidiana da vida urbana, faz parte das tarefas que a plataforma de arte e cultura urbana (Passeio) do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) tomou como sua. Assenta no pressuposto de que o insignificante nos dá chaves e pistas para identificar, interrogar e vincular pequenos relatos da vida quotidiana com processos e mundos sociais mais amplos. Tal tarefa, mostra a extensa investigação que responde a este desiderato, como a desenvolvida, por exemplo, pelo historiador Michel de Certeau e o filósofo Henri Lefebvre, requer imaginação e a adoção de uma atitude sensível outra que contribua para tornar estranhos modos habituais de experienciar objetos, ambientes e eventos, e para alimentar a curiosidade de olhar para as coisas familiares de um modo diferente, mais aberto e recetivo a que elas falem connosco. Ao invés de nos guiarmos por um olhar com preocupações pragmáticas, que tendem a dominar na vivência diária, suspendemos esse tipo de preocupação para experienciar o quotidiano urbano de uma forma desinteressada.
Como falar dessas coisas comuns, do que existe, do que somos, daquilo que escapa ao radar da imprensa diária ocupada que está com o escandaloso e o extraordinário, pergunta o ensaísta Georges Perec na sua obra L’ infra-ordinaire (1989, pp. 18-19).
Seguindo esta inspiração, a roupa estendida deixa de ser evidente, um objeto natural e passa ser alvo de interesse e curiosidade, nas suas particularidades. Neste micro ensaio deixo-me interpelar pela roupa a secar em estendais colocados no exterior de janelas, nas varandas e mesmo no espaço público, com os quais me deparo ao caminhar pelas ruas da cidade de Braga. Trata-se de um objeto mundano que quem caminha por estas ruas espera ver, ainda que de forma inconsciente. Simultaneamente, o encontro reiterado com varais de roupa a secar nas fachadas dos edifícios vai renovando e sedimentando a ideia comum de que fazem parte da urbe.
Das memórias (pessoais e coletivas) das cidades portuguesas, e das suas paisagens semióticas tradicionais ou “pitorescas”, constam seguramente as cordas nas janelas com roupa lavada a secar. Em diferentes imaginários urbanos (Silva, 1992), tal imagem está associada aos países do Sul europeu e, em geral, aos países do Sul global. Esta associação também é alimentada pelas construções discursivas oferecidas por práticas artísticas diversas que participam do modo como cada cidade se faz. Recentemente Mr Dheo, artista urbano, materializou a imagem dos varais e a sua poeticidade num mural, no cimo da Escadaria dos Guindais, entre alguém que estende roupa de forma alinhada e as rosas e camélias dos jardins, “para que o Porto tivesse ainda mais orgulho da sua identidade”, refere o artista em entrevista ao Ágora do Porto (Reis, 2023). Terá sido porventura esse tipo de orgulho que mobilizou, em 2019, a população das cidades do litoral croata contra a proibição de pôr a secar roupa no exterior e em defesa dos Tiramoli ou varais. Uma realidade que, num contexto propiciador, pode até motivar “conflitos” interculturais, como o noticiado pela RFM em 2022 (Turista polaco criticou os portugueses por estenderem roupa na rua e foi atacado. Tudo aconteceu nas redes sociais, onde o turista fez uma publicação a pedir uma lei que proíba os portugueses de estenderem a roupa na rua).
Para além do potencial simbólico identitário e do elemento poético que a roupa colorida a esvoaçar ao vento atualiza ou torna presente, sobretudo para aqueles veem, interpretam e experienciam a cidade pelo uso caminhado, importa convocar ainda os modos como as práticas domésticas de pendurar a roupa em meio urbano são capazes de produzir realidades materiais, mutáveis e alternativas às planeadas nas políticas urbanas, com benefícios ambientais inegáveis. A inventividade, dizem-nos Lebefvre (1961) e de Certeau (1980), é parte integrante do fabrico da vida quotidiana.
Nas cidades do Sul global, o luxo de abastecimento de água em quantidade suficiente e o uso de máquinas de lavar é ainda um privilégio de poucos, bem como o de máquinas de secar. No seu aspeto material, estender a roupa no varal equivale a usar um espaço para secar a roupa recém-lavada, a maneira mais económica de cobrir a carência de outros meios. Muitas vezes as habitações não têm um espaço destinado à tarefa e têm pouca luz solar no interior. Quem nelas habita recorre a várias estratégias inventivas para responder a tais necessidades, prolongando o espaço interior para o exterior ou, dito de outro modo, produzindo um espaço intermediário, um espaço entre que reconcilia ou liga o público e o privado. Falamos de estratégias que podem estar sustentadas na articulação entre vizinhos e na construção de uma certa noção de comunidade (Roquefort & Medina, 2021). Nesse quadro, é curioso registar que a Deco, a “maior organização de consumidores” em Portugal, no seu espaço online dedicado aos condomínios, inclui um conjunto de recomendações sobre o assunto: Conflitos com a roupa estendida: como resolver?
Numa ótica mais positiva, para que nos chama atenção a filósofa norte-americana Yuriko Saito (2017) na sua Estética da Vida Quotidiana Familiar, a roupa estendida que vemos a secar nas janelas, tantas vezes associada à pobreza, a zonas da cidade empobrecidas e populações migrantes, dá um sentido de humanidade e fragilidade a um ambiente que seria uniforme e rígido, não fosse a presença desses objetos. Ao mesmo tempo, os varais podem ser lidos como signos da resiliência e dignidade de quem habita nesses espaços, não obstante as dificuldades inimagináveis. Servem também para alimentar sentimentos de vizinhança e sensações que associamos à ideia de casa. Evoco a este propósito o uso que o Coletivo Pátio, “um coletivo de criativos”, faz da metáfora do Estendal para designar o festival itinerante de curtas-metragens que organiza “para celebrar a vida de bairro e espalhar cinema por esses estendais fora”.
O potencial estético e político da roupa estendida em contextos urbanos aqui sublinhado choca com a atitude punitiva dominante no Norte global, não obstante os claros benefícios ambientais da prática e a proliferação nesses países de movimentos apologistas do slow living. O ideal do slow living parece combinar com a lentidão necessariamente implicada na atividade de estender a roupa e de a apanhar (e dobrar), bem como com o tempo necessário para apreciar a beleza do que muda na rotina quotidiana de estender a roupa — as estações do ano, a meteorologia, as cores, as peças de roupa — uma beleza referida por Laura, participante num estudo empírico sobre A presença de beleza na gestão da vida quotidiana, feito por Pauliina Rautio (2009), no campo da educação.
Face aos benefícios ambientais e terapêuticos referidos, são as convenções sociais, e julgamentos morais associados que parecem dominar ainda o modo como os consumidores do Norte global lidam com a lavagem doméstica (Klint, Johansson & Peters, 2023). Razões que podem também ajudar a explicar porque é que as práticas domésticas de lavagem da roupa têm recebido pouca atenção dos urbanistas, apesar da sua centralidade na vida urbana quotidiana. Não será por acaso que a frase idiomática “lavar a roupa suja em público” é usada para criticar a exposição pública de detalhes que deveriam permanecer privados. A investigação existente sobre a história deste objeto mundano e práticas associadas mostra como estão ligadas a mudanças na posição das mulheres, em casa e fora dela (Lupton, 1993; Van Herk, 2002), mudanças essas que imbricam com relações de classe e relações socio-espaciais (Watson, 2015).
Zara Pinto-Coelho
Braga, 29 de março de 2024
Referências
Coletivo Pátio. https://www.coletivopatio.com/copy-of-cinema-no-estendal-4
Costa, M. (2022, 13 de janeiro). Turista polaco criticou os portugueses por estenderem roupa na rua e foi atacado. RFM.
Deco. https://www.condominiodeco.pt/informe-se/artigos/vizinhos/conflitos-roupa-estendida
de Certeau, M. (1980). L’invention du quotidien: 1. Arts de faire. Gallimard.
Lefebvre, H. (1961). Critique de la vie quotidienne II, Fondements d’une sociologie de la quotidienneté. L’Arche.
Lupton, E. (1993). Love, leisure and laundry. In E. Lupton, Mechanical brides Women and machines From home to office (pp. 15-27). Cooper-Hewitt.
Klint, E.; Johansson, L.-O. & Peters, G. (2023) No stain, no pain – A multidisciplinary review of factors underlying domestic laundering. Energy Research & Social Science, 84. https://doi.org/10.1016/j.erss.2021.102442
Perec, G. (1989). L’ infra-ordinaire. Seuil.
Pink, S. (2007). The sensory home as a site of consumption: Everyday laundry practices and the production of gender. In E. Casey & L. Martens (Eds.), Gender and consumption: Domestic cultures and the commercialisation of everyday life (pp. 163–181). Ashgate.
Rautio, P. (2009) On hanging laundry: The place of beauty in managing everyday Life. Contemporary Aesthetics, 7. http://hdl.handle.net/2027/spo.7523862.0007.007
Reis, J. (2023, 11 de dezembro). Do alto dos guindais, Mr Dheo convida dona Rosa a olhar o porto.
https://www.agoraporto.pt/noticias/do-alto-dos-guindais-mr-dheo-convida-dona-rosa-para-olhar-pelo-porto
Roquefort, R. S. & Medina, L. C. (2020). Ropa tendida: Gestos de la experiencia cotidiana de la ciudad. Rev. Rupturas, 10(2), 127-142.
Tuan, Y-F. (1997). Space and place: The perspective of experience. University of Minnesota Press.
Saito, Y. (2017). The aesthetics of laundry. In Y. Saito, Aesthetics of the familiar Everyday life and world-making (pp. 115-140). Oxford University Press.
Silva, A. (1992). Imaginarios urbanos: cultura y comunicación urbana. Tercer Mundo Editores.
Van Herk, A. (2002). Invisible laundry. Signs, 27(3), 893-900.
Watson, S. (2015). Mundane objects in the city: Laundry practices and the making and remaking of public/private sociality and space in London and New York. Urban Studies, 52(5), 876–890.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Braga
LATITUDE: 41.5454486
LONGITUDE: -8.426506999999999