Pós eleições: um passeio no centro de Porto Alegre-RS-Brasil
Sou da geração que foi para as ruas marchar pelas “Diretas Já” em 1984, tendo crescido sob o regime militar. Talvez, muitos dos que hoje marcham e cantam a célebre cantiga “Marcha Soldado, cabeça de papel”, fazendo continência nas ruas de Porto Alegre e outras cidades Brasil afora, sequer lembrem desse período da história ou entendam realmente o que estão pedindo. Registro uma dissonância cognitiva clara entre os que estão ali exercendo o direito à manifestação pacífica e o teor das alegações que fazem, em frente aos quartéis, manifestando a sua inconformidade com o pleito.
Isso seria aceitável, não fosse o pedido para a intervenção federal. Senão, vejamos: a norma constitucional citada (Art.142, norma reiterada e equivocadamente interpretada pelos manifestantes) não versa sobre “novas eleições” ou mesmo sobre uma ação militar no Judiciário. As narrativas são tão dúbias que sugerem rompimento constitucional, revolução ou golpe de Estado, com direito à bizarra tentativa de comunicação com extraterrestres (sim, isso aconteceu em Porto Alegre) e até – pasmem – saudação nazista em Santa Catarina, Estado vizinho ao Rio Grande do Sul, em (mais uma) cena vexatória para todos nós. Tudo devidamente registrado nas redes sociais, para quem se interessar.
Como se isso não bastasse, clama-se por intervenção federal (eufemismo para golpe militar, isto sim um ato antidemocrático) pressupondo que as Forças Armadas têm poder constitucional de tomar a Presidência. Estamos a falar de alguém que pode até não agradar a quase metade do eleitorado, mas que foi legitimamente eleito pela maioria (com pequena margem de vantagem – 50,9% a 49,1% – vale registrar), sem comprovação de qualquer fraude eleitoral, num sistema seguro e idôneo, onde a urna eletrônica é referência no que se refere ao uso da tecnologia em processos eleitorais.
Em Porto Alegre, em meio às bandeiras tremulando na área militar da cidade, ao lado do principal comando da capital, reduto da resistência bolsonarista pós-eleições, uma modesta casa exibe a profética pichação “Fora Bozo”, dando o recado silencioso aos vizinhos e passantes, de que unanimidade não existe, em lugar algum.
Ao prosseguir nesse passeio solitário, vejo que ainda há muitos “patriotas”, vestidos de verde e amarelo, cores “adotadas” como símbolo bolsonarista. Mas não somos todos verde e amarelo? Precisamos todos ser verde e amarelo (independentemente da política setorial e partidária), num ambiente de polarização que não desaparecerá rapidamente, se não houver boa vontade e espírito conciliatório. É preciso reunificar o país e encontrar o equilíbrio na busca de soluções para melhorar a vida dos brasileiros.
Em 2022, diferentemente de 4 anos atrás, quando o mesmo sistema declarou vitorioso o então candidato Bolsonaro, as urnas “falharam”, segundo as teorias conspiratórias. Mas eram as mesmas urnas, estranhamente questionadas quando o resultado não é favorável a esse ou aquele. “Chamem o exército”, bradam os inconformados. As eleições de 2018, vencidas por Bolsonaro, assistiram a uma crescente onda fardada: quase mil candidatos de diferentes patentes se lançaram ao pleito eleitoral e 73 deles se elegeram nos parlamentos nacionais e estaduais, segundo pesquisa do jornalista Fabio Victor em seu recente livro “O poder camuflado” (2022). Desde então, foi crescente a politização da caserna e a militarização do alto escalão do governo em precedente perigoso para nossa jovem democracia.
Sem qualquer “camuflagem”, oficiais exerceram cargos públicos estando ainda no ativo, confundindo sua carreira de Estado com as funções no governo. Assim, a permanência dos fardados na arena política não é algo recente, ela já fazia parte do processo de redemocratização do país pós-ditadura, e ajuda a explicar o atual estado de coisas, segundo o jornalista citado. De fato, poucas medidas foram tomadas para limitar sua influência e seus interesses foram, em grande parte, preservados, tornando a questão militar ainda um dos desafios para o equilíbrio das instituições em nossa sociedade.
“Supremo é o povo”, leio numa faixa em Porto Alegre, um sinal de leitura dupla, dirigido, em tom de crítica, ao Supremo Tribunal Federal. Vale lembrar que esta denominação estabelece apenas que este é o mais alto dentre a estrutura do Poder Judiciário, sem se sobrepor aos demais poderes. Assim, só posso entender que os manifestantes acampados na calçada do principal quartel da capital gaúcha, estão a dizer o óbvio: o poder emana do povo, sim, está na nossa Constituição Federal (1988) como sendo o princípio da soberania popular da qual, paradoxalmente, os mesmos querem abrir mão chamando o exército para “intervir”. Depois de 21 anos de regime militar neste país, já sabemos muito bem como funciona. Quem não sabe, deveria estudar um pouco mais a história, talvez ler Rousseau (1973) e entender que as liberdades de cada um devem ser respeitadas, desde que as decisões sejam em prol da vontade da maioria, e a soberania alinhada ao povo. A essas alturas, já sabemos o que o povo decidiu, e uma nova página começará a ser escrita a partir de 1 de janeiro de 2023, com e para todos os brasileiros.
Resta à parte contrária aceitar e fazer o que também lhe é de direito, ou seja, adotar uma postura de fiscalização democrática constante em sua oposição, zelando pelo cumprimento das leis, onde todos somos responsáveis. E que se entenda, de uma vez por todas, que a Intervenção Federal prevista na Constituição não pode ser usada para modificar o resultado de uma eleição democrática. O mecanismo só é utilizado em situações específicas, e nenhuma delas contempla o descontentamento ou a não-aceitação do resultado. Que se desmontem as tendas ao redor dos quartéis, os contatos com os ETs, os bloqueios nas estradas, os xingamentos e o ódio generalizado – precisamos avançar de forma pacífica e racional, e isso só acontecerá quando conseguirmos voltar a debater de modo civilizado, lidando também com quem pensa de maneira diferente.
Texto e imagens: Madeleine Müller
Publicado a 07-12-2022
Referências:
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Rousseau, J.J. (1989). Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Editora Universidade de Brasília; Editora Ática.
Victor, F. (2022) Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. Companhia das Letras.
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