Plumas e Palmeiras: Um esvoaçar no contexto urbano

Em período de Carnaval, dentre as peculiares paisagens da ilha da Madeira encontram-se foliões que carregam as plumas pregadas às suas fantasias. Neste ensaio, busco expressar algumas sintonias entre esses adereços com as palmeiras espalhadas na paisagem urbana do Funchal. Caracterizadas pelo molejo e esvoaçar, essas duas representações capturaram o meu olhar. Suas danças traçavam algo naquele contexto e havia algo mais a ser desperto além da brisa que as embalavam. Foi preciso expectar por um período reflexivo para ajustar essa intrigante relação, que foi ganhando imbricações, por vezes provocativas, que se situavam entre a inspiração e a transpiração, até desnudar essa perceção e, por fim, validá-la.

Diminuir a marcha do pensamento para desvendar as camadas de memórias é fundamental para esse decurso, pois elas nos dão pistas para melhor perceber as conexões do processo de criação (Salles, 2006). Mas, na dinâmica entre os insights e os acasos, é intrigante também conferir outros alinhamentos agregados a esse sistema, que se tornam sine qua non para decifrar as questões embrenhadas nessa ceifa. Ao desmontar e verificar essa rede, se compreende, inclusive, as próprias categorias dos signos propostas por Peirce (Ibri, 1992): a da primeiridade, ou seja, a da sua qualidade e imprevisibilidade, o primeiro momento em que nos deparamos com o objeto, ainda mergulhados na experiência, sem darmos conta de refletirmos sobre ele; a secundidade, quando o signo se insere em confronto com a realidade, vindo à nossa consciência, expondo-se à uma condição diádica e de descontinuidade, nos fazendo refletir sobre a experiência vivida e então interpretá-la; e a terceiridade, quando ele é exposto às crenças e hábitos, possibilitando as mediações e as nossas próprias escolhas, o objeto/signo será tomado sob as nossas interpretações de acordo com os distintos princípios que nos guiam.

Ao sair da primeiridade, ou seja, da experiência sensível diante a consonância percebida entre as plumas e as palmeiras, foi a relação diádica, a secundidade, que me fez perceber e refletir sobre esse repertório, dando atenção, por exemplo às (dis)semelhanças entre ambas. No contexto do Carnaval, os holofotes são voltados para a “caixa preta” – expressão usada para tratar o trecho do asfalto onde os foliões desfilam- onde as plumas exacerbam as suas cores. Fixadas nas fantasias moldadas aos corpos dos foliões, o molejo dessas peças se engrena ao cenário. Diferenciam-se das palmeiras, pois suas folhas em formato de pluma ou leque estão agarradas a um tronco imóvel, preso à terra, e por vezes coberta pelo cimento ou asfalto. No entanto, estão nas alturas, e lá se movem com a parceria da brisa. Flutuam, esvoaçam, preenchendo espacialidades e, assim como as plumas, indicam a potência do coletivo em suas composições.

Nesse jogo diádico vale atestar as cores dos objetos tratados. As plumas do Carnaval se abrem para o arco-íris, sugerindo a marca barroca da festa. As cores vivas e formas arredondadas iludem a um bordado de encaixes, marcado por irregularidades. Uma composição apoiada no excesso de informações, engendrada por uma imprecisão, delegada pela mobilidade. As palmeiras jogam com outros matizes. O verde das folhas encapsula o topo do tronco castanho, e o céu azul anil dá conta de emoldurar a peça esguia, valorizando a estética do contraste. São os golpes da brisa que movem as folhagens da copa, ensaiando diferentes desenhos ao ar.

Ainda no estágio dos confrontos, a abrangência das palmeiras está além do que é visto, pois elas estão organizadas em uma família de milhares de espécies. Algumas ganham significados emblemáticos em determinadas épocas e culturas, como aconteceu com a Palmeira Imperial, um exemplar exótico destinado ao Rio de Janeiro no início do século XIX, quando a corte portuguesa se instalava na colónia (Araújo & Silva, 2010). Duzentos anos depois, Portugal procedeu a um movimento inverso, buscando palmeiras procedentes da África subsaariana, para agregar características exóticas ao destino turístico do Algarve e, por consequência, provocando a entrada de outro componente exótico no país, bastante nocivo: a praga escaravelho vermelho, que também se inseriu na Ilha da Madeira (Ramos et al., 2015).

Talvez seja o significante exótico que dê conta de exprimir o ponto de partida deste exercício. Na condição de um gatilho, ele surge camuflado, mas dá força para captar, justificar o estado de qualidade (primeiridade), aquela “essência” da experiência que tive, diante a perceção gerada por essa comunhão entre as palmeiras e as plumas no Funchal. Para tentar desvendar essa hipótese vale conferir o estado da terceiridade desses elementos, digo, argumentar sobre algumas crenças e hábitos que acabam por se relacionar com esses objetos.

No que toca ao Carnaval ali visto – e ouvido-, a festa criava muitos estranhamentos para quem tem na memória uma larga sintonia com o processo de criação de um desfile de escolas de samba no Brasil (Luderer, 2007). Era muito distinto conferir o simulacro desse espetáculo, movido por melodias brasileiras ou da América Latina, dentre outras fontes musicais, a dirigir o cortejo das trupes na “caixa preta”, movida por foliões a carregar formatos de fantasias com plumas, que remetem aos desenhados para os carnavais brasileiros. Tal inquietude foi semelhante quando se toca o tema das palmeiras. Alinhadas à beira mar, estendidas junto de altos edifícios de redes hoteleiras, elas marcam um processo de higienização voltado para turistas, primando por uma paisagem refugiada dos vários montes da ilha, cobertos por bananeiras.

Diante essa composição de elementos que pouco se engrenam, pode-se conferir três pressupostos: (i) que há sintonia entre as plumas e as palmeiras, mas além do molejo, essa semelhança está amparada por um modelo de sociedade que privilegia as imagens, tal e qual Debord (1991) nos alertou; (i) por esse prisma, são compostos modelos artificiais entorno das paisagens urbanas, que criam estigmas na cultura, e sendo dada a devida  atenção ao sistema dos objetos (Baudrillard, 1997); esses signos tornam-se uma representação efêmera nessa paisagem, e, (iii) no contexto dessas particularidades, confere-se que, entre as plumas e as palmeiras há um esvoaçar das raízes culturais, que se move a favor de uma paisagem preenchida por tomos que circulam globalmente, favorecendo a promoção de um não lugar (Augé, 2005).

Texto e imagens: Cynthia Luderer

Publicado a 19-05-2023

Referências:

Augé, M. (2005). Não-lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. 90 Graus Editora.

Araújo, J. S., & Silva, Â. M. S. (2010). A palmeira imperial: da introdução no Brasil-Colônia às doenças e pragas no século XXI. Ciência e Cultura62(1), 26-28.

Baudrillard, J. (1997). O sistema dos objetos. (Trad. de Zulmira R. Tavares). Perspectiva.

Debord, G. (1991). A sociedade do espetáculo. Contraponto.

Ibri, I. A. (2021). Semiótica e pragmatismo: interfaces teóricas: vol. 2. Editora UNESP.

Luderer, C. A. F. (2007). O processo de comunicação na criação do carnavalesco Raul Diniz [Dissertação de Mestrado] Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/4960

Ramos, A. P., Rocha, M., Belchior, S., Peixoto, R., Caetano, M. F., & Lima, A. (2015). Micobiota associada a adultos do escaravelho das palmeiras (Rhynchophorus ferrugineus) provenientes de Cascais, Portugal. Revista de Ciências Agrárias, 38, 220-229. http://hdl.handle.net/10400.5/10649

Salles, C. (2006). Redes da criação: construção da obra de arte. Editora Horizonte.

Salles, C. (s.d.). Creation as a semiotic process. https://www.academia.edu/7779337/Creation_as_a_semiotic_process

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Madeira

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