Pixo: a ação e a obra de Bruno Rodrigues “Locuras”
Na cidade de São Paulo da década de 1980 nasceu uma prática coletiva protagonizada por jovens moradores das periferias ou de áreas vulneráveis da cidade, caracterizada pela realização de arriscadas performances no espaço público com o objetivo final de instalar assinaturas nos muros e fachadas que compõem a paisagem urbana. Cada assinatura exibe um codinome escrito com uma caligrafia única e original, criada por seu autor, mas todas as assinaturas seguem um estilo semelhante: letras justapostas, verticalmente alongadas, com formas angulares e desenhadas em cor única (geralmente o preto). Alguns anos após seu surgimento, a prática passou a ser denominada pixação e suas marcas estéticas – as assinaturas das arriscadas performances – denominadas pixos. Pixação, palavra grafada com “x”, ao invés de pichação, com “ch”, como consta nos dicionários de língua portuguesa, uma alteração na grafia para distinguir o sentido das duas palavras e afirmar a identidade transgressora da prática coletiva que segue condutas específicas.
O pixo fala de uma população que busca construir novos sentidos para sua própria existência numa metrópole que a esmaga continuamente. São Paulo, a cidade que é a mais rica do Brasil e, ao mesmo tempo, uma das mais desiguais do mundo, configura em seus traçados uma segregação socioespacial que submeteu moradores de periferias a uma vida permeada pelo risco. Como situa o cientista social Thiago Trindade (2017), para uma boa parte da população, morar em São Paulo significa dedicar muitas horas do dia ao deslocamento entre casa e trabalho, conviver com a insuficiência e/ou precariedade de infraestrutura urbana e trabalhar tanto quanto possível para arcar com os custos de moradia num contexto de alto valor do solo urbano. Altos índices de violência urbana, mobilidade precária, estruturas racistas, ausência de acesso a opções de lazer e espaços seguros de sociabilidade, densas barreiras para a inserção no mercado de trabalho e para a conclusão do percurso formativo são algumas das condições enfrentadas por quem cresceu numa periferia no território paulistano, levando essas pessoas a viverem cotidianamente situações de risco de perda da vida ou de desconexão com a própria subjetividade. Além disso, caminhar por São Paulo é transitar por uma cidade de muros, como denominou a antropóloga Teresa Caldeira (2000), em que o nós e os outros são mantidos separados por barreiras físicas e sistemas de identificação e controle, tornando os enclaves fortificados a principal figura da segregação:
Viver atrás de muros e cercas é uma experiência cotidiana dos paulistanos e os elementos associados à segurança constituem um tipo de linguagem através do qual as pessoas de todas as classes expressam não só o medo e a necessidade de proteção, mas também mobilidade social, distinção e gosto. (Caldeira, 2000, p. 293)
Como, então, existir e não somente sobreviver? Como afirmar a vida acima da opressão dos enclaves fortificados? Como garantir o direito à memória, à ação criadora, à participação ativa na construção dos sentidos vida urbana?
Bruno Rodrigues vivenciou a São Paulo do risco. Assim como muitas outras crianças que viveram o contexto periférico, Bruno é filho de pais migrantes que vieram buscar melhores condições de vida na capital paulista. Fixaram moradia e escreveram essa parte de sua história no bairro Parque Imperial, na região metropolitana, onde controlavam de perto os passos do filho, já que os riscos da vida urbana os assombravam cotidianamente. Foi aos 10 anos de idade que o pixo surgiu na vida de Bruno como uma nova perspectiva: romper com a existência confinada em uma arena de violência e sobrevivência e conquistar a liberdade de viver a cidade como espaço de criação. Foi assim que a pixação o impulsionou a desbravar e se apropriar do espaço urbano, acessar lugares que jamais se viu autorizado a estar, dominar o risco ao qual sempre esteve submetido e encontrar em si a ousadia que o levaria a inscrever sua marca no lugar mais notório da selva de concreto. Foi com o pixo que ele experimentou a sensação de vislumbrar a cidade do topo, de cima dos prédios que arranham o céu e que passaram a ser o alicerce sob seus pés.
O educador Paulo Freire (1979) nos ensinou que o papel fundamental dos que estão comprometidos numa ação cultural para a conscientização não é propriamente falar sobre como construir a ideia libertadora, mas convidar as pessoas a captar com seu espírito a verdade de sua própria realidade. Para Bruno e para outros sujeitos periféricos o pixo surge como um caminho para traduzirem criativamente a experiência de vivenciar São Paulo das margens ao centro. A densidade, o risco e a parceria são alguns dos aspectos presentes em suas vivências e que surgem traduzidos nas assinaturas de traços espessos que ocupam horizontal e verticalmente os espaços de visibilidade pública da metrópole, anunciando não só a presença, mas toda a potência criadora e potência de vida de pessoas comuns – office-boys, professoras primárias, caminhoneiros, pintores prediais, pedreiros, atendentes do comércio etc. A caligrafia única de cada pixo atesta que a heterogeneidade de identidades é inerente entre os sujeitos que integram o movimento da pixação, mas a unidade do estilo caligráfico recorda a conexão e os vínculos identitários existentes entre eles. Personagens que podemos identificar com a categoria que o semioticista Eric Landowski (1997) irá denominar gênio, por se empenharem em explorar, por uma prática de criação, algum espaço de sentido definido
[…] numa busca autônoma de sentido que, ultrapassando sua pessoa singular, o conduz a descobrir, no mundo, novas configurações sensíveis, as quais, sendo no momento, por definição, ainda desconhecidas, nessa medida mesma parecem inaceitáveis, incompreensíveis, chocantes – de mau gosto – para a maioria. (p. 159)
Para Bruno, a vida na pixação fez emergir o desejo – ou, por que não dizer, a urgência – de confrontar a visão generalizada de que sua prática de criação é “inaceitável” ou “incompreensível”. Ao vivenciar a beleza e a liberdade que o pixo trouxe para sua vida, e, ao mesmo tempo, se ver diante da rejeição da sociedade e até das pessoas de seu convívio, decidiu se apropriar de outras linguagens para apresentar ao mundo a dimensão poética dessa manifestação. Assim, assumiu o papel de articulador no interior do movimento e criou em 2007 o selo PixoAção, dedicado à produção de documentários que tinham como um dos objetivos a desestigmatização do universo do pixo e de seus praticantes. Reuniu personagens, relatos, documentos, registros e os mais variados elementos que compõem a história de quatro décadas da pixação e passou a pautar discussões e a criar conteúdos referência para seus integrantes e para o público externo. Mostrou como o pixo contesta a ideia de que o lugar dos pobres é na periferia e, em contrapartida, cria enclaves livres em oposição aos enclaves fortificados, ou, para convocar o conceito postulado por Hakim Bey (2001), zonas autônomas temporárias: uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, mas é como “uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la” (p. 17). Uma “revolução de todo dia”, que empreende formas de batalha para forjar uma realidade diferente e entoar em diferentes vozes o grito de Lefebvre (2001) sobre o “direito à cidade”.
E após produzir documentários sob perspectivas inéditas e singulares, decidiu ampliar a abrangência de seu discurso e reconstruir na linguagem das artes visuais sua visão sobre a prática que transformou sua vida. Seguiu a missão do gênio (Landowski, 1997), o sujeito que compreende que as novas configurações sensíveis que está a descobrir têm uma necessidade interna, e passou a ter “senão a certeza, em todo o caso a fé, a convicção íntima de que, um dia, serão reconhecidas e, talvez, inclusive, acabarão por integrar-se à rede das formas conceptuais, estéticas ou morais constitutivas da ‘cultura’, do ‘bom gosto’ e do ethos” (p. 159). Iniciou sua produção artística, começou a traduzir a descoberta das novas configurações sensíveis em forma de obras e afirmou publicamente a certeza que sempre carregou consigo de que, sim, o pixo é arte!
É com essa bagagem que a produção artística de Bruno Rodrigues Locuras, desde 2016, passou a figurar em espaços institucionais de arte e cultura. Em abril de 2023 seu trabalho entrou no evento Salone del Mobile, em Milão, a partir de um convite do designer brasileiro Pedro Franco. Bruno produziu 9 telas que integraram a cenografia do espaço da nova coleção do designer, contando com a colaboração de mais de 15 pessoas integrantes do movimento da pixação na execução da obra. A composição foi pensada em cada detalhe que constrói a poética da pixação nas ruas: os pixos que ocupam as 9 telas apresentam as marcas originais de seus autores e foram escolhidos de modo a exibir o minucioso cuidado no desenho das letras que cada pixador ou pixadora tem durante a ação – a um cuidado que visa alcançar o máximo de equilíbrio na proporção e distribuição no suporte, seja ele a tela artística ou a tela urbana; destaca-se também a preocupação em representar todas as modalidades do pixo, que são as diferentes formas de ocupação do suporte urbano, as quais exigem a realização de desafiadoras performances corporais, o planejamento de táticas transgressoras e/ou o auxílio de artefatos específicos, normalmente improvisados com objetos encontrados durante o percurso nas ruas; a diversidade de traçados e efeitos visuais presente nas letras é igualmente um aspecto notável nas telas, tanto nas letras desenhadas com a tinta spray de lata – com o traço simples ou o traço “foscado” (com aspecto borrifado) – quanto naquelas desenhadas com tinta látex e uso de rolinhos de espuma de diferentes espessuras. A sequência de apresentação das telas e a distribuição dos pixos no espaço também foi pensada de modo a compor o efeito de sentido da pixação avistada nos muros e fachadas de casas e prédios, respeitando a dimensão e a forma de compor a organização visual dos espaços no ambiente urbano.
É com esse olhar meticuloso e acurado sobre a construção do sentido da pixação que Bruno concebe sua arte. Sua obra nos lembra que para compreender o sentido do pixo enquanto cultura urbana e herança cultural é necessário disponibilizar todos os cinco (ou seis) sentidos para captar o significado de viver São Paulo a partir de suas margens. É necessário compreender o quão fascinante e ao mesmo tempo hostil essa cidade pode ser. Uma cidade cosmopolita, que acolhe pessoas de todos os cantos do Brasil e do mundo, mas que engole quem não age para transformá-la. Só assim será possível iniciar um mergulho no universo da pixação e perceber por que ela se tornou uma marca identitária da capital paulista e ação criadora de uma parte representativa de sua população. É assim que Bruno Locuras nos convida a adentrar em sua obra.
Texto: Micaela Altamirano*
Publicado a 10-05-2023
* Educadora de arte e articuladora cultural, doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP em cotutela com Estudos Culturais pela Universidade do Minho. A pixação de São Paulo foi tema de sua dissertação de mestrado, premiada como melhor do ano de 2019 pela COMPÓS – Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação, no Brasil. Desde 2017 colabora com o coletivo ArdePixo, dedicado a projetos que fomentam a conscientização sobre o a cena do pixo paulistano.
Referências:
Bey, H. (2001). TAZ: zona autônoma temporária (R. Rezende, & P. Decia, Trad.). Conrad Editora do Brasil.
Caldeira, T. P. (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (F. Oliveira, & H. Monteiro, Trad.) (3ª. ed.). Ed. 34; Edusp.
Freire, P. (1979). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire (K. de Mello e Silva, Trad.). Cortez & Moraes.
Landowski, E. (1997). Gosto se discute. In: E. Landowski & J. L. Fiorin, J. L. (Orgs.), O gosto da gente, o gosto das coisas (pp. 97-160). EDUC.
Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade (R. E. Frias, Trad.). Centauro.
Trindade, T. A. (2017). O que significam as ocupações de imóveis em áreas centrais?. Caderno CRH, 30(79), 157–173. https://doi.org/10.9771/ccrh.v30i79.20061
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