O que é a cidade?
Passeio divagante
Por muito que se pense o contrário, uma cidade é uma miragem, um nome, uma cartografia de lugares, memórias, experiências, gestos repetidos ou viagens de uma vida. Outra vez, outras recordações e a mesma cidade será outra. A cidade é um artigo indefinido, uma geografia incerta. Para que essa névoa se torne transparente, é necessário situar lugares reais e imaginários, habitá-los com o correr dos dias, as memórias, os afetos.
A minha pátria – Buenos Aires – não é o dilatado mito geográfico que estas duas palavras assinalam: é a minha casa, são os bairros amigáveis e, juntamente com essas ruas e recantos que são uma querida devoção do meu tempo, o que neles soube de amor, de penas, de dúvidas. (Borges, 1923a)
Em modo confessional, o grande Jorge Luis Borges desdobra assim uma prega infinita da sua Buenos Aires literária e segue desenvolvendo pelos versos do primeiro poema, do seu primeiro livro de poemas:
Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles,
incómodas de turba y ajetreo,
sino las calles desganadas del barrio,
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso
y aquellas más afuera
ajenas de árboles piadosos
donde austeras casitas apenas se aventuran,
abrumadas por inmortales distancias,
a perderse en la honda visión
de cielo y llanura.
Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan,
únicas ante Dios y en el tiempo
y sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado -y son también la patria- las calles;
ojalá en los versos que trazo
estén esas banderas. (Borges, 1923b, p. 9)
A rua, o espaço poético da deambulação dos solitários, estende-se, bifurca-se por labirintos e lonjuras onde habitam milhares de almas, cada uma um universo, um possível caminhante anónimo por esse mapa sem fim. Borges não se queda nas ruas da sua experiência quotidiana, não se detém nas ruas anónimas do bulício e da algazarra. Buenos Aires é apenas um nome, uma ambiência que pode aflorar em tantas geografias reais-imaginadas que se desdobram aos quatro ventos por incomensuráveis distâncias.
Nem sempre é assim. Na memória em pedra de muitas cidades, outros persistem em delimitar espaços confinados, fixar lugares, narrativas ou cenários que se percorrem como quem visita galerias e museus de cera.
Quando os mapas se desenham em papéis com margens fixas, não ficam espaços para grandes respirações. Tudo se simplifica, os traços são claros e as imagens são carimbos, esquemas desencantados e repetíveis.
Diz-se então: este é o mapa da cidade, estas as ruas, as praças, os locais referenciados. Não há cidade fora do mapa. Como muralhas, os limites do desenho recortam um objeto preciso, um modo de ler, de percorrer, de medir distâncias. Imagino um círculo inscrito nessa geometria da cidade; um centro, a ordem das coisas dispostas com os seus nomes. Do topo da mais alta torre, toda a cidade se avista, os telhados, os grandes edifícios, a amálgama das construções pequenas, as grandes praças, certas avenidas rasgadas de lés a lés, as copas das árvores dos jardins, quadrículas de quarteirões traçados regularmente ou formas caprichosas e ramificadas. Ao longe tudo se esfuma, colinas onduladas, o mar, montanhas ou campos a perder de vista. A cidade é o ponto fixo na grande tela do mundo que dali se resguarda; daqui partiam e chegavam as estradas que a distância indefinia: um centro – cada cidade era um centro, uma figura destacada do fundo genérico do mapa onde se desbotavam cores e linhas imprecisas. Dizia-se então que toda a urbanização era cidade e que tudo o resto era outra coisa, o campo, o território, os lugares de passagem.
Acontece, porém, que as coisas muitas vezes mudam mais depressa do que os sentidos que se fixam nas palavras que as denominam. Quando é assim, as palavras cravam-se nesse firmamento de sentidos, imobilizam-se, baralhando o conhecimento do mundo que se enreda a desocultar aquilo para o qual as palavras do costume já não servem. Como os humanos são animais de palavras, ocorre então o paradoxo: tenazmente, as palavras resistem no seu universo de sentidos, anacrónicas ou perdidas em metáforas e ficções genéricas, ou minúsculos recortes do real que querem significar.
Hoje, a maior parte da urbanização não é cidade – não corresponde às representações mais comuns da cidade enquanto aglomerado situado, denso, com uma forma, um centro, uns limites, um contraste com o que está à volta – mas precisamente porque a palavra resiste, fala-se do urbano como sendo uma espécie de degenerescência ou parte espúria da “cidade”. Não adianta insistir e tentar convencer D. Quixote que os moinhos de vento não são gigantes de grandes braços.
Uma vez, deambulando pela Rua da Estrada (Domingues, 2009), um passante questionou-me querendo saber a razão porque fotografava coisas aparentemente banais, casas, esplanadas, cafés, comércios… sobre as quais faltaria a curiosidade do turista ou do viajante à procura de coisas extraordinárias. Expliquei o meu trabalho: fotografava quase obsessivamente porque a estrada era como uma cidade em linha e nos faltavam, a mim e aos outros, outras representações, outras imagens para entender que muito mais do que a cidade é a urbanização, e que até as estradas estavam fora desse imaginário porque as estradas se imaginavam como caminhos para o longe, como uma fita negra que ia de um ponto a outro, de uma cidade a outra; na cidade havia ruas e avenidas e não estradas.
Por isso, não era habitual pensar-se que as margens das estradas pudessem estar continuamente construídas e que a vida aí se organizava como em qualquer outro lugar. A Rua da Estrada era essa combinação – umas vezes para deslocações curtas e próximas, outras para passar em velocidade, em direção a outras terras. Para além do mais, a estrada é antes de mais um sistema (sócio)técnico que combina outros sistemas – rede elétrica, gás, água, saneamento, telecomunicações, etc. – que são exatamente o suporte da urbanização, da edificação, da funcionalidade de muitas e diversas atividades e movimentos de pessoas, de mercadorias, de bens, de informação, de energia, de tudo o que implica mobilidade e relação, que são coisas cada vez mais incontidas na lógica das distâncias curtas e dos movimentos breves.
O meu interlocutor ouvia em silêncio e acabou por comentar: eu também vivo neste trajeto, tenho aqui a minha casa; a escola dos meus filhos é além; e costumo tomar café naquela pastelaria; trabalho aqui por perto; por esta estrada vou mais longe quando preciso e para andar mais depressa, entro e saio num tramo de autoestrada ali mais à frente… mais conversa houvesse e mais trajetos surgiriam porque a vida dificilmente se confina nos mesmos lugares.
Não me lembrei de Borges, nesse breve encontro. Temos que parar noutros planaltos para que a poesia ou a literatura nos entre pela vida de todos os dias, organizando um sentido para o mundo. Em todo o caso, afirmar que se vive num trajeto (e não num determinado lugar, como é corrente ouvir-se) é bem revelador da condição urbana contemporânea: uma trama de redes e relações que se inscrevem territorialmente de modo muito contrastado, ora repetindo longas permanências em espaços e movimentos de raio curto, ora compondo um ziguezaguear de movimentos rápidos em distâncias longas. Podemos no decorrer de um dia, de uma semana ou de uma vida experienciar estas ruturas e diferentes escalaridades, diversificar os modos e os suportes da mobilidade.
De sistema de lugares, pontos de referência e percursos – tal como Kevin Lynch organizava a imagem e a vivência da cidade num livro publicado em 1960, The Image of the City –, somos agora da transurbância, da organização de percursos que as vicissitudes da vida e das nossas posições e relações sociais diversas e contraditórias impõem. Como sempre, movemo-nos ou fixamo-nos por razões tantas vezes distintas e injustas. Uns que se movem porque querem e assim escolhem, e outros porque a necessidade os impele, por vezes, para muito longe.
A urbanização estendeu-se a todo o planeta, dissolveu as cidades em enormes e complexas constelações onde as descontinuidades, os contrastes e as injustiças se sobrepõem aos velhos e aos novos ícones das cidades extraordinárias. Aí se distribui a maior parte dos humanos.
Referências
Borges, J. L. (1923a). Fervor de Buenos Aires [prólogo]. Buenos Aires: Imprenta Serantes.
Borges, J. L. (1923b). Las calles, Fervor de Buenos Aires. Buenos Aires: Imprenta Serantes.
Domingues, A. (2009). A rua da estrada. Porto: Dafne.
Lynch, K. (1960). The image of the city. Massachusetts: The MIT Press.