Passarinheiro: entre o mítico e o imaginário
A apreciação dos pássaros é fascinante e encanta pessoas de todas as idades. A temática evoca beleza e uma certa mística. Em Braga, um sujeito ficou conhecido por ser um grande amante dos pássaros. Além de protegê-los, angariava fundos para a manutenção das aves cuidadas por ele com afinco. Maia Passarinheiro, que em uma homenagem da câmara nomina uma das ruas da freguesia de Dume, é uma das figuras ilustres de Braga dos anos de 1950. Homem pobre, visto pelas ruas do município com suas gaiolas, Maia Passarinheiro é tema de uma da gravura de J. Veiga (Figura 01), respeitável ilustrador bracarense, de um desenho de Lula Campos e do poema “Passarinheiro”, de Arnaldo de Azevedo Pinto (Figura 02).
Em Braga, a Feira dos Passarinhos é uma tradição que envolve adultos e crianças que nas manhãs de domingo vão à Praça do Comércio — na zona central da cidade — para apreciar os pássaros em sua variedade de cores, estilos e cantorias. No meio dos pássaros, a sensação é a de estar em um grande concerto da natureza, um encanto! Quem muito se apercebeu da potencialidade dos pássaros, dos tons e dos vibratos que emitiam foi o músico e ornitólogo francês Olivier Messiaen. A paixão pelos pássaros era tamanha que Messiaen povoou a sua obra com o cântico das aves. Em uma das obras mais célebres de sua carreira, Catalogue d´Oiseaux, que também ficou conhecida como Catalogue of birds, o músico evoca o som dos pássaros em uma belíssima combinação musical. Alguns estudiosos da obra de Messiaen evidenciam que essa obra é “ uma das obras mais ambiciosas da era moderna, pelo menos em termos de tamanho e complexidade […] A música evoca não apenas o canto dos pássaros, mas a aparência dos pássaros, seu comportamento em várias épocas do ano e até seu habitat característico na França, mantendo o nível brutal de desafios técnicos e seu próprio idioma tonal de influência serialista” (Manheim, 2017).
Para além dos sons, os pássaros remetem para as mais variadas e antigas mitologias advindas da Grécia, de Roma, do Egito, dentre outras. É no campo das artes que as aves evidenciam essa intensa relação entre o homem e os mistérios superiores. Tomemos por exemplo a referência entre a pomba e o espírito santo para os cristãos, a grande fênix que na mitologia grega teria renascido das cinzas ou os corvos que em muitas culturas são mensageiros da morte e dos maus presságios. Estes aqui colocados são apenas alguns poucos exemplos de como o imaginário em torno das aves perpassa a nossa subjetividade. As aves estão presente na literatura, na pintura, em gravuras, na fotografia, no cinema, no dia-a-dia das cidades, podendo até mesmo ser alçadas à salvadoras do futuro da humanidade, como no enredo do filme norte-americano intitulado Bird Box. Lançado em 2018 pela Netflix, o filme teve inspiração em livro homônimo de Josh Malerman (2014). Com roteiro de Eric Heisserer e dirigido por Susanne Bier, o thriller é estrelado por Sandra Bullock e conta a história de uma mãe e de seus dois filhos que fogem de uma ameaça sobrenatural e apocalíptica e precisam de atravessar uma floresta com vendas nos olhos tendo como único guia o som dos pássaros. As aves aparecem apenas nas últimas cenas do filme revestidas de uma essência divina, já que não podem ser atingidas pela ameaça sobrenatural, além de possuirem capacidades de repelir o inimigo. Aqueles que chegam até o local protegido pelos pássaros, poderiam sobreviver. Aqui as aves acenam com a esperança, as boas lembranças, a divina proteção aos que atravessam o vale das sombras.
Os pássaros também remetem a experiências oníricas em O Ornitólogo (2016), longa metragem luso–franco–brasileiro de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata. De início o filme sugere uma contemplação dos pássaros feita por Fernando, um ornitólogo, que ao se deparar com um pássaro raro se desequilibra no caiaque onde estava e acaba por cair na água e perder os sentidos. A partir de então, Fernando ingressa em um universo onírico e vivencia experiências fabulares. Não se sabe se a ave vista por Fernando é real ou se é imaginária. A aparição remete a uma espécie de abertura temporal-espacial para a aventura fabular vivida pela protagonista. Aqui, a figura dos pássaros continua a referenciar elementos entre o sujeito e a mística. Em um dos diálogos, diante de alguns acontecimentos sobrenaturais, uma das personagens afirma: “Tengu está aqui”. Teria sido esta a ave vista por Fernando? Tengu é uma ave mitológica japonesa que habita florestas e montanhas. Tem nariz comprido, cabeça e asas de pássaro. De acordo com a mitologia, o Tengu teria como habilidades o teletransporte, a telecinese e poderia entrar nos sonhos das pessoas.
Nem salvadores divinos, nem possuidores de dons oníricos. Em The Birds (1963), Hitchcock causa estranheza e choque sensorial, ao explorar o lado fantasmagórico dos pássaros. Maus presságios, terror e morte são o mote do thriller em que as aves passam a atacar e matar pessoas de maneira nunca antes imaginada. No filme os corvos não apenas simbolizam a morte, como são os próprios assassinos. Um dos pontos altos do filme é quando uma revoada de pássaros de várias espécies ataca as pessoas que estão a correr em desespero pela praia. O enredo macabro da obra-prima de Alfred Hitchcock teria sido inspirado em um evento acontecido anos antes na Califórnia (Estados Unidos). Em 2011, cinco pesquisadores divulgaram na revista Nature Geoscience que em 1961 pássaros marinhos teriam sido envenenados por uma neurotoxina produzida por um tipo de fitoplâncton. As aves teriam morrido em pleno voo, a despencar do céu. Muitas delas agitadas e agonizantes sobrevoavam a cabeça das pessoas ou batiam nas janelas das casas na Baía de investigadores devido a semelhança com as cenas do roteiro de Hitchcock.
Em 2019, o investigador da Passeio, Fábio Marques, esteve na Feira dos Passarinhos, na Praça do Comércio, onde pode observar a paixão pelos pássaros. Na ocasião gravou o som ambiente da feira, o qual disponibilizamos abaixo. Entre a mítica e o imaginário, os pássaros evocam uma forte relação com as cidades, os sujeitos e a arte.
- Figura 01: Maia Passarinheiro, gravura do artista bracarense J. Veiga
- Figura 02: Maia Passarinheiro por Lula Campos e poema “Passarinheiro”, de Arnaldo de Azevedo Pinto
Por: Elaine Trindade, 02/2020.
Áudio : Fábio Marques
Referências bibliográficas
Bargu, S., Silver, M.W, Ohman, M.D., Benitez-Nelson, C.R & Garrison, D.L. (2011). Mystery behind Hitchcock’s birds In Nature Geoscience. Acedido em: https://www.nature.com/articles/ngeo1360
Edrich, J. W. (1974). Manual Prático do Passarinheiro. Lisboa: Livraria Popular de Franscisco Franco.
Kajiwara, K. (2017). Folclore japonês: Conheça o Tengu. Acedido em: https://coisasdojapao.com/2017/03/folclore-japones-conheca-o-tengu/
Manheim, J. (2017). Olivier Messiaen: Catalogue d´Oiseaux. In AllMusica Review. Acedido em: https://www.allmusic.com/album/olivier-messiaen-catalogue-doiseaux-mw0003150715
Redação. (2016). Ciência descobre o que enlouqueceu os pássaros de Hitchcock. Acedido em : https://veja.abril.com.br/ciencia/ciencia-descobre-o-que-enlouqueceu-os-passaros-de-hitchcock/
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Braga
LATITUDE: 41.54544860000001
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