Paralelas na cidade 1 – Espaço e comunidade a partir de James Carey

Calcorreamos três ruas paralelas da cidade do Porto: Bonjardim, Santa Catarina e Rua da Alegria. As três rasgam a baixa, desembocando junto ao Marquês. Paralelas na cidade é um olhar deambulante, necessariamente atento e emocional sobre o espaço urbano. Paralela 1 – Rua do Bonjardim, Porto

Num sentido ascendente, a Rua do Bonjardim, na baixa do Porto, começa junto à Brasileira e termina no Jardim do Marquês. É uma longa reta na cidade, paralela a duas outras grandes retas na cidade: Rua de Santa Catarina e Rua da Alegria. O Bonjardim começou por ser, para mim, uma rua de má fama, no dizer de uma colega do ensino secundário, cuja mãe a proibiu de fazer por lá um recado, por ser um ponto de prostituição. Depois disso, desci e subi o Bonjardim dezenas de vezes, num traçado que mistura muito de cidade e também de aldeia e que tem, de facto, algo de decadente e sedutor. Hoje, no dia em que voltei a calcorrear o Bonjardim, já com um olhar mais atento e um propósito definido, descobri uma rua em constante mutação.

Cá em baixo, onde a cidade fervilha, o barulho do trânsito mistura-se com o martelar de obras, que brotam um pouco por toda a Baixa. Não sabemos bem que cidade é que vai surgir deste ímpeto de construção, sempre a apontar para o turismo. Por agora, vemos que o Bonjardim vive entalado entre hotéis e alojamento local. A Brasileira é um hotel, do outro lado da rua, destapou-se outra unidade hoteleira. Os turistas vão ressurgindo, cruzam-se com os tipos da cidade. E há quem se proteja nos programas de apoio à preservação do comércio tradicional. Esses, juntam à vocação inicial um ar contemporâneo, o que só confirma a metamorfose da urbe. Já vi talhantes no Bolhão a posar com uma orelha de porco para a fotografia! Alguma coisa que parecia imutável está, definitivamente, em processo de erosão.

Talvez seja boa altura para convidarmos James Carey (teórico dos Estudos Culturais norte-americanos) para esta deambulação que, impressivamente, nos comunica algo, que misturamos com a nossa própria experiência do lugar. Ao defender a comunicação humana como um fenómeno que constrói culturas, Carey (que se baseou em Dewey e Mead, da Escola de Chicago), concebeu a arte, arquitetura, política e cultura, como pertencendo ao chapéu mais abrangente da comunicação. Isto é, a comunicação como um modo de vida e não como uma transmissão de informação (Carey, 2010). E eis que estacamos ao cimo de uma paralela, tentando descodificar o que é que este ininterrupto processo comunicativo (a esfera pública) que palpita na cidade nos terá para revelar.

À medida que subo a rua, o silêncio. Lá atrás fica o bulício dos restaurantes em hora de entrega de material, as mercearias finas com a mistura de cheiros. E o eterno bacalhau pendurado à porta dos estabelecimentos. As portas, agora, fotografadas fora de contexto, parecem batentes de aldeia. Porque também é disso que é feito o Porto. Janelas que são montras da vida privada: vasos, pássaros, gatos, cortinas encardidas e decrépitas, lado a lado com a imitação sofisticada do alojamento local. Nada no Bonjardim é distinto de tantas outras ruas de tantas outras cidades. Exceto a idiossincrasia que a torna única e irrepetível, como um corpo que pertence a um ser individual.

Volto a James Carey (e aos Cultural Studies norte-americanos) para refletir sobre a relação entre espaço, lugar, tempo, memória, local, global e comunidade. Socorro-me da interpretação de Angharad N. Valdivia para o conceito de espaço, a partir de Carey. “Como é que um espaço pode acomodar fragmentação, resistência, diferença e cultura comum?” (2010, p. 35), questiona-se a autora. Para concluir: “A noção de espaço de Carey é rica, contraditória e, por isso, teoricamente transgressiva, recusando toda as facilidades de demarcação ou divisões binárias”(Valdivia, 2010, p. 35). Se, para Carey, o espaço está para a transmissão (o global) e o tempo para a memória, isso não significa que o autor descarte o potencial comunitário do conceito. É certo que a visão transmissiva e globalizadora (o poder da distância, que James Carey foi buscar a Harold Hinnis) parece aniquilar o particular. Transportando esta noção para o espaço urbano, há quem fale em gentifricação. Poderemos colocar esta questão de uma forma simples: há um Mc Donald’s familiar em qualquer cidade do mundo onde nos desloquemos. Mas Carey restitui uma esperança ritualística ao conceito de espaço, quando o associa (como os seus antecessores fizeram) à herança do lugar (à memória), melhor dito, à antropologia, à cultura e à geografia. Um espaço que não é só tecnologia impessoalizada e massificada, mas um reservatório comunitário (sublinhe-se que a comunidade é associada etimologicamente, em Carey, a comunicação), que põe os sujeitos da polis em conversação incessante e vivificadora da cultura local.

Nada disto é a preto e branco, o que há a desvendar é superior ao que sabemos até ao momento, nesta cidade em formação. Interessa reter a noção de comunidade, como semente para um lugar-memória, lugar de trocas sociais e simbólicas, em que os sujeitos e as culturas que o constroem estão em permanente processo comunicativo. É a cola que nos liga. Afirma Filipa Subtil: “[Carey] insiste numa perspectiva cultural que procura a conjugação entre comunicação, participação, partilha, associação, vida cívica e democracia. Em síntese: comunicação e comunidade” (2014, p. 41). O que é isto senão a cidade, esta paralela que se apresenta aqui, cruzando-se, multiplicando-se, sujando-se e povoando-se nestas conversas, nestes fragmentos de afinidades, conflitos e poderes comunitários e comunicacionais?

Olhando para o Bonjardim, a tentação para ver a contaminação de uma ideia de global sobre o local é inevitável. A questão é saber se esse local globalizado (que apenas se agarra à memória enquanto adereço kitsh e justificador da voragem turístico-economicista) irá ser dominante na cidade ou se esta terá recursos (um repositório cultural em renovação constante) para se transmutar, sem perder o sentido comunitário.

Texto de Teresa Lima

Publicado a 14-03-2022

Referências

Carey, J. W. (2009). Communication as culture, revised edition (2nd ed.). Routledge. https://www.routledge.com/Communication-as-Culture-Revised-Edition-Essays-on-Media-and-Society/Carey/p/book/9780415989763

Subtil, F. (2014). A abordagem cultural da Comunicação de James W. Carey. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 37(1), 19-44.

Valdivia, A. N. (2010). Space – The possibilities and limits of the conversation model. In S. Linda & C. Clifford (Eds.), Key Concepts in Critical Cultural Studies (pp. 26-39). University of Illinois Press. https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&AuthType=ip,shib,uid&db=e000xww&AN=569700&lang=pt-pt&site=ehost-live&scope=site

 

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Porto

LATITUDE: 41.1535979

LONGITUDE: -8.6079081