Os ventos de Abril, Grândola e o Monte del Castro
A pequena vila alentejana de Grândola eternizou-se no imaginário histórico de Portugal após o locutor Leite de Vasconcelos, da Rádio Renascença, transmitir a canção Grândola, Vila Morena, de José Afonso, como sinal derradeiro para o início da Revolução de 25 de Abril de 1974. A música composta em homenagem à localidade foi o sinal escolhido pela organização do Movimento das Forças Armadas (MFA) para que tomasse marcha os revolucionários. A canção soou aos 25 minutos do dia 25 de Abril, como segunda chamada para os atentos militares que esperavam o aceno musical nos quartéis. Como desfecho de uma crise institucional, em 24 horas um levante de capitães do Exército concretizou uma revolução que pôs fim a uma ditadura que já durava há quatro décadas (Rezola, 2007). Findara a mais longa ditadura da Europa Ocidental no Século XX. Era o início de um processo revolucionário que agitaria o país até 1976.
Este monumento que aqui exponho não se encontra em Grândola, tão pouco em Portugal, mas está ao pé do Monte del Castro, em Vigo, cidade espanhola da região da Galícia. É curioso, pois existe uma polêmica envolta nesta atração turística. Por mais que não seja confirmada de forma oficial, paira no ar uma teoria que liga este monumento ao período franquista da Espanha. Inclusive, são constantes as pichações e intervenções de arte urbana antifascista sobre o monumento. Podemos observar a bochecha do soldado pintada de azul, por exemplo, talvez em alusão a um palhaço, ou figura semelhante. Entretanto, sem ter conhecimento deste detalhe na época em que o visitei, sua existência me lembrou a poesia contida na Revolução do 25 de Abril. Não pela arquitetura em si, muito menos pelo seu simbolismo, é claro, mas pela força da natureza. Pela imponência das flores ao surgirem à ponta de uma espingarda. Assim como elas, o povo português teve sua própria força – forte como são sempre as flores – encarnada nos belos cravos que anunciaram a aurora da democracia que se avizinhava neste país em 1974.
Após a canção Grândola, Vila Morena soar em aviso de um novo tempo a ser construído em Portugal, poucos minutos passados das 3h do dia 25 de Abril, os estúdios da Rádio e Televisão de Portugal (RTP) foram ocupados pelos revolucionários. Este era o primeiro dos cinco alvos a serem tomados na cidade de Lisboa. Seguiram-se o Rádio Clube Português (RCP), a Emissora Nacional, o quartel-general da região militar e o aeroporto. Foi veiculado no RCP o primeiro comunicado do Movimento, que solicitava a calma da população, mas ainda não explicava os rumos da revolução (Reis, 1990). Apenas durante a manhã, por volta de 7 horas, escutou-se no RCP um comunicado do MFA com a orientação política da revolução e o seu significado: a liberação de Portugal do Estado Novo.
Em 2024 celebramos os 50 anos do processo que devolveu a democracia ao povo português. Ao estudar o passado, é possível construir uma ponte com o presente, assimilar recortes temporais e compreender melhor os fenômenos atuais. Em um mundo atual marcado por violentas polarizações e constantes ataques às democracias e aos direitos humanos, é urgente pensarmos e construirmos uma sociedade questionadora, que reflita sobre os processos midiáticos, sociais e políticos do passado, construindo uma memória coletiva que contribua para a solidez da democracia presente e futura.
O escritor angolano Agualusa (2017, p.11) observou, muito sabiamente, que “a memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento”. Uma sociedade democrática demanda necessariamente a assimilação do passado, ou seja, a compreensão dos contextos que conduziram a História aos acontecimentos do agora, o resgate das imagens ligeiras que foram miradas de dentro do comboio que cita Agualusa. De acordo com Halbwachs (1968), as lembranças são recomposições do tempo passado, que se baseiam em testemunhos, deduções, reconstruções, e talvez por isso se mostrem desfiguradas como uma paisagem vista em alta velocidade. As lembranças são coletivas, por mais que sejam produzidas individualmente, quando estamos inseridos em um grupo social (Halbwachs, 1968). O 25 de Abril é uma data significativa para os portugueses, seja para os que viveram este período, seja para os demais. O inconsciente coletivo do povo está marcado com esta memória, que é, naturalmente, coletiva.
O caminho das nossas memórias – por vezes assemelhado a um labirinto em meio às crises de confiabilidade midiática e política que atravessamos – pode, e deve, levar-nos à reflexão em sociedade sobre os acontecimentos que se desenrolam no presente, com base em travessias já navegadas em antigos tempos. Após cinco décadas completas de permanente construção democrática, os ventos do 25 de Abril seguem soprando em Portugal, resgatando a memória coletiva deste período histórico que ainda tem a vivacidade de propor a esperança de um mundo onde a força das flores se sobreponhe às espingardas, como contemplamos na Revolução dos Cravos e na subida do Monte del Castro.
Texto e foto: Vinícius Zuanazzi.
Referências:
Agualusa, J. E. (2017). O vendedor de passados. Quetzal.
Halbwachs, M. (1968). A memória coletiva. Vértice.
Reis, A. (1990). Portugal Contemporâneo Vol. 6. Alfa.
Rezola, M. (2007). 25 de Abril: Mitos de uma Revolução. A Esfera dos Livros.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Vigo
LATITUDE: 42.2323294
LONGITUDE: -8.7260303