Os sinos e a malta do campanário

No último mês de abril, a Passeio participou de um concerto musical com sinos – promovido pela Câmara Municipal de Braga – dirigido pelo maestro espanhol Llorenç Barber e pela etnomusicóloga mexicana Montserrat Palacios. Ambos são fervorosos defensores do toque manual dos sinos e propõem uma prática que está para além da tradição religiosa. Há cerca de 30 anos fazem música com sinos de igrejas em diversos países: Espanha, Itálica, Brasil, Portugal…

O concerto foi intitulado “Liberdade, Libertad, Liberté”, prestando homenagem à Revolução dos Cravos. Participar da atividade, além de um ato festivo, abriu à Passeio a possibilidade de entrar nas áreas restritas das igrejas de Braga, acessar ao alto das torres, ver a cidade de cima e descobrir os sinos.

Após responder a uma chamada pública, feita via internet, reunimos com os demais voluntários e coordenadores com os quais tomamos ciência daquilo que seria realizado. Ao todo, 80 participantes foram mobilizados para ocupar o cimo de 12 igrejas.

Quase invisíveis aos olhos, os sinos são elementos indissociáveis da paisagem sonora da cidade. Funcionam como uma marca sonora (Schafer, 1994) que é parte sensível da identidade local, de seu património histórico e cultural. Estão nas periferias, no alto das serras do entorno e são muitas dezenas espalhados por todo o Centro Histórico. São tantos que a cidade mantém desde 1932 uma fábrica de sinos em funcionamento.

As badaladas, além demarcar o poder da igreja neste território, são uma forma de organização e comunicação com os moradores. Os diferentes toques anunciam nascimentos, mortes, o horário das missas e demarcam a própria passagem do tempo. São componentes naturalizados e, no entanto, também aguçam a curiosidade. Quem os toca, como toca, quem escolhe as melodias e o que significam? A arte de tocá-los é uma tradição em crise e que resiste à mecanização dos badalos em narrativas como as registadas no documentário o Som dos Sineiros (Cortez, 2018).

Do ponto de vista dos visitantes, como o que assina este ensaio, chegar a Braga foi descobrir a cada hora, a cada missa, a cada igreja a que me pus aos pés, uma melodia. O som que se repete ritualmente também pode causar espanto e estranhamento no momento em que este foge ao esperado.

Fazer música do alto dos campanários, entretanto, levantou de partida algumas questões: desde a cautela das permissões de entrada, que nos colocava sob a receção atenta dos responsáveis pelas igrejas, passando pela própria noção do sagrado, do inacessível, que percebíamos associada aos sinos, e até mesmo a falta de conhecimento sobre este emissor sonoro. Era preciso acostumarmo-nos com a ideia do sino enquanto instrumento musical, uma percussão profana e empunhada por pessoas comuns. A mensagem que mais ressoou durante a preparação e que foi dita repetidas vezes pelos dois coordenadores era: “os sinos não são do bispo, são vossos!”.

Podemos aproximar este tipo de atividade do conceito de community music, quando um líder ou um facilitador rege um conjunto de participantes (Higgins, 2012) para uma atividade musical pública e que dialoga com as comunidades em que estão inseridas. Além da dimensão do ensino musical não formal, estabelecemos ao longo do processo uma dinâmica que passava por aproximarmo-nos de um fazer tradicional (o de sineiro); de tornamo-nos parte da atividade cultural da Braga; e por aquilo que, por mais de uma vez, ouvi meus novos amigos dizerem: ‘estou aqui para conhecer pessoas’.

Estávamos ali num ato consciente de socialização. Por mais diverso que fosse aquele grupo, reconhecemo-nos no gosto pelo fazer musical, na curiosidade pelos sinos e na vontade de tocar para a cidade. A música era o nosso elemento comum, o ponto de contato que, como nos diz Schütz (1951), nos colocava em comunhão: nós, os tocadores de sino, e a cidade, ouvintes e partícipes desta comunidade.

O distanciamento que presenciamos do alto das torres, diferente do olhar voyeur sobre a cidade que relata Michel de Certeau (1994) quando observava Nova Iorque no topo de um edifício (imune às rotinas, às massas, às ruas que compõem seu cotidiano), nos colocou diretamente em contato com as ruas e os passantes, ligados pelas potentes badaladas.

E assim, começámos a preparação do concerto que envolveu cinco ensaios ao longo de duas semanas. Cada igreja tinha sua pauta musical específica e um grupo responsável. Fiquei, com outros quatro companheiros, alocado na Igreja dos Terceiros, no Largo de São Francisco. Todas as igrejas escolhidas ficavam no Centro Histórico.

Durante o processo, além de tomar notas, fiz registros em áudio, resultando nas duas peças aqui apresentadas. A primeira, com trechos dos ensaios, gravados do alto da torre do sino; a segunda, com trechos do concerto, no dia 25, com o gravador nas mãos de um amigo a percorrer as ruas do Centro Histórico de Braga.

Até o dia do concerto, eu e outros quatro companheiros de campanário, somando três homens e duas mulheres, aprendemos a manipular os sinos (atar as cordas no badalo, evitar bater em áreas sensíveis e acostumar com os tipos de movimentos); a diferenciá-los (do maior, grave e pesado de tocar ao menor e mais estridente); e a cumprir os movimentos musicais ditados pela pauta. Para mim, um desafio a mais: não tocar propriamente os sinos, mas ser responsável por reger o conjunto. Um maestro de badalos.

Do desajeitado primeiro ensaio ao eufórico momento do concerto, o grupo tornou-se uma “malta” amiga que se falava quase diariamente pelos chats virtuais, que batia ponto no café para conversar antes dos ensaios e que se divertia a fazer música. Os sinos e a missão do concerto eram nosso ponto de conexão.

Das histórias que nos chegavam, lembro de pessoas que estavam a dizer que os sineiros estavam “doidos”, sem perceber os porquês daquelas badaladas fora da hora e da regra da igreja. Outros questionavam o porquê de um concerto pela liberdade que usa um símbolo de domínio religioso e tido como conservador.

E justamente aí, penso, esteve a graça deste ato. O espaço sagrado, aos poucos, transformou-se numa sala de ensaios. O alto da igreja, de tão familiar, já era um pouco nosso. Os sinos também. Os toques rituais e mecanizados aos poucos deram lugar a uma melodia profana, carregada por intenções, alturas, intensidades diversas, que rompia com a sua monotonia e impunha outra carga simbólica. Tocávamos, aprendíamos, nos desafiávamos e divertíamos. O som que ressoou no dia 25 do passado abril uniu as muitas torres, rompeu com a rotina da cidade: convocou-os a ouvir. Ressoou como um alarme pela liberdade. Para nós, uma experiência musical, uma gratificante intervenção cultural e uma celebração de amizade.

Por Fábio Marques, 07/2019

Agradecimentos: Pablo Varela (gravação de áudio, dia 25/04/2019) | Llorenç Barber e Montserrat Palácios (coordenadores do concerto).

Referências bibliográficas

Cortez, V. (2018). O Som dos Sineiros. Retirado de https://www.youtube.com/watch?v=2zwEcyOy9xQ

De Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora vozes.

Higgins, L. (2012). Community Music: In Theory And In Pratice. Nova Iorque: Oxford University Press

Schafer, R. M. (1994). Our sonic environment and the soundscape: The tuning of the world. Rochester: Destiny Books.

Schütz, A. (1951). Making music together: A study in social relationship. Social research, 18(1), 76-97. Retirado de https://www.jstor.org/stable/40969255

Ficheiros audio

Bastidores do concerto de sinos em Braga
Trechos do concerto de sinos em Braga

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Braga

LATITUDE: 41.5337544

LONGITUDE: -8.438225599999999