O ritual da conversação no Mercado Biológico de Gondomar
Recorro ao meu corpo como instrumento percetivo, impregnado de memória e de experiência, para vos falar do Mercado Biológico de Gondomar, subúrbios do Porto. A feira acontece ao sábado, pela manhã, e acabei por me ver envolvida como observadora participante, vulgo vendedora ocasional. Se o investigador não se despe da sua subjetividade quando sai em campo (“não se lava em lixívia”, dizia frequentemente uma professora de metodologia), o contrário também é verdadeiro. Isto é, o olhar nunca nos abandona, mesmo numa apressada ida à padaria. O que só reforça o que aqui venho demonstrar: o poder da comunicação enquanto comunhão. Este é um texto no feminino, de alguém que nunca se posicionou propriamente como feminista.
No Mercado Biológico de Gondomar percebi que o mundo está todo errado, porque a energia feminina continua subjugada aos mecanismos de funcionamento masculinos. Nós, mulheres, fazemos isso todos os dias, na conquista por um lugar profissional, por uma família equilibrada, por um corpo que se quer desejado. A roda está a andar e não paramos a engrenagem. Ao inverso, saltamos, como para apanhar um comboio em movimento. Foi aqui que ouvi a frase-revelação: “Enganaram-nos bem com a história da emancipação feminina”. E calha bem falar disto, porque quero trazer para a conversa o fundador dos Estudos Culturais norte-americanos, James Carey, e a defesa de um tipo de comunicação que tem sido negligenciada na investigação académica e considerada insignificante pela hegemonização sócio-económica. Tal como acontece com o poder feminino. Falo da comunicação ritual. No mercado, e em Carey, falamos para pôr em comum. A feirinha (são três produtores e uma comunidade restrita, “less is more”) é um espaço de encontro comunitário, de preservação da sociedade no tempo. No mercado, o nosso corpo regista sons, cheiros, texturas e experiências quotidianas. É cinestesia. Destaco os rostos das mulheres que por lá transitam, carregando preocupações ancestrais.
A. é avó de netos e mãe de filhos. Abandonou uma profissão confortável na grande cidade quando percebeu que a prole ia ser educada por outros, que não ela. A radicalidade da opção de vida que assumiu não deve ser um elemento preponderante na análise. Fixo as suas palavras, as mulheres que a antecederam e que ela gerou. Observo os olhos com que seleciona as melhores hortaliças. A azáfama pelo alimento. Há um ritual (misto de religioso e profano) nisto do pão nosso de cada dia. E, claro, voo para Durkheim, Weber (referências de Carey), assim como para a construção da sociedade ocidental, que está assente na ideia moralizante do trabalho e da religião. Não haverá exemplo mais expressivo desta ação contrária à comunicação no espaço (a transmissão como o céu na terra) do que este punhado de seres, que compram e vendem produtos, enquanto partilham dois dedos de conversa semanal. Para mais, não só esta inter-relação é mediada pelos sentidos do corpo, como estimulada pela profusão cinestética dos produtos em volta.
Assemelhando-se a formigas laboriosas, as mulheres amontoam-se à volta do pão acabado de chegar. Este é o cheiro prevalecente da manhã. O aroma do pão cozido, ainda a ressoar, proveniente de uma fermentação de massa-mãe. Curioso termo. O feminino em trigo amassado. Os homens não vão às compras? Sim, vão. Mas são as mulheres que chamam a minha atenção, lutando quase ferozmente pelos últimos coentros da banca. Para os homens, ir ao mercado é um hobby. Um parêntesis para evocar o alimento como comunicação e cultura, à moda do pensador dos Estudos Culturais norte-americanos. Os coentros são uma afronta aromática a muito nortenho. Por aqui, não. Embora se procure imenso a salsa (não com dogmatismo).
Pois, então, as mulheres. Chegam compostas, umas. Impecavelmente vestidas, donas da situação. Compram para levar para casa (a sua e as dos outros que lhes sucederam). Murmuram algo sobre fazer um caldo de nabiças. Enumeram os dias da semana e o alimento que vai estar sobre a mesa. Comentam as maleitas, procuram no alimento o elixir. Apresentam-se assoberbadas, outras. A comunicação ritual não exclui a transmissiva. Acontece serem complementares ou que entrarem em conflito. A prova do que acabo de enunciar está nos gestos do quotidiano (o ritual), direcionados, quase inteiramente, para o número, o sucesso, o facto, a eficácia, a produtividade, a transmissão, em suma. No deve e haver das compras, partilham-se receitas e cansaços. Fazer uma lasanha anda muito perto de corrida de fundo. Aos seus postos, preparar, partida! O melhor tempo de execução são uns gloriosos 50 minutos, já com a carne estufada, molho bechamel feito, placas de massa fresca comprada. O que cozinhar com hortos de penca? E o que fazer à idade, que ataca a massa muscular? Vejamos: bacalhau com natas, ginásio, caminhada, casa arrumada, miúdos encaminhados na escola, relaxar ou não relaxar. Já agora, um pão sem glúten, para experimentar. Tudo perfeito, cada coisa no seu lugar, “yes, we can”. E a história da emancipação feminina? Sim, pois, é verdade. A mulher fada do lar já vai longe, somos fortes, somos boas profissionais, mães exemplares. Mas eis que aparece um aranhiço em casa e toca de o matar à paulada. Quem mais? Com sorte, o assado não queimou no forno, enquanto isso. Sabem os malabaristas que rodopiam uma quantidade impressionante de bolas no ar? Aí está!
Também há finais felizes. Ufa! Mulheres reformadas, seguras de si, bonitas, realizadas. Sobreviveram! E jovens com o carrego ao colo, cheias da sua condição de mãe. Vê-se na pele. Recolhem maçãs. Que sinais transmitem aos nossos sentidos as cores e o tamanho de um fruto? Qual a hierarquia com que pontuamos as nossas escolhas? Para os bebés, as maçãs mais doces e tenras. Para os lanches, pinhões e caju. A lentilha beluga (preta por fora e amarelada por dentro) atrai ao mesmo tempo que suscita indecisão. Há leitugas boas para a sopa (espanto!). Pelo espaço, circulam tribos, dentro da tribo maior, que são os aficionados do biológico. São elas: os macrobióticos, os veganos, os contra carbo-hidratos, fanáticos do mel, curiosos, os abertos à diferença, os que se enclausuram em crenças.
Posto isto, não estive mais do que a tecer considerações sobre o lado simbólico presente numa feira biológica, nas imediações do Porto. Engane-se quem ali apenas veja três bancas, caixas com cenouras tortas e o binómio lucro/prejuízo. No Mercado Biológico de Gondomar, concretiza-se esta ideia: “Os seres humanos criam símbolos para enquadrar e comunicar os seus pensamentos e intenções e utilizam esses símbolos para conceber práticas, coisas e instituições. Por outras palavras, usam símbolos para construir uma cultura em que possam viver juntos.” (Adam, 2009, p. X) Além dos produtos e dos corpos que circulam, pouco mais há de palpável neste quotidiano semanal, totalmente insignificante no contexto de um mundo globalizado. Mas estes símbolos que aqui se fiam, semana a semana, criam realidades. Como afirma Filipa Subtil, “na comunicação ritual não se joga apenas a transmissão de informações ou mensagens, mas a co-criação e partilha de atividades culturais que definem a realidade” (Subtil, 2014, p. 32).
Se formos a ver bem, com olhos de ver, o mercado (este, de que eu falo, mas outros espalhados por distintas geografias, claro está) são mesmo a síntese entre a atividade produtiva (tão enfatizada pela lógica da transmissão) e a ritual. Neles, nestes pontos comerciais compostos por gente concreta, cheios de imperfeições e matizes, há cheiros, cores e texturas. Mas o fundamental a uni-los, talvez esteja no palavreado que os atravessa. Diálogo, oralidade, conversação, olhos nos olhos, mão na mão. A polis. Não pode ser fruto do acaso esta reflexão sobre a condição feminina que observo semanalmente, desde o final do Verão. A conversação é crítica. A co-criação é criativa. A comunicação, assim perspetivada, é agenciamento. Nem poder hegemónico, nem contrapoder histriónico. É construção lenta e irreversível, como as águas de um rio.
Texto: Teresa Lima
Fotos: João Nuno Barbosa
Referências
Adam, S. (2009). Foreword. In J. W. Carey (Ed.), Communication as culture, revised edition (2nd ed.). Routledge.
Subtil, F. (2014). A abordagem cultural da Comunicação de James W. Carey. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 37(1), 19-44.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1339525
LONGITUDE: -8.533841899999999