O que seria uma cidade sem crianças? E o que é uma cidade das crianças?
Durante os períodos de confinamento devido à pandemia por Covid-19, o esvaziamento dos espaços públicos encheu-nos de desolação. Lugares que antes ganhavam vida com as famílias que os frequentavam, pareciam-nos então vazios, tristes e até algo fantasmagóricos. Os fantasmas da solidão, da morte e do desconhecido povoavam os nossos inconscientes e, como noutras situações de pandemia, suscitavam vários medos, como o medo do outro (do estranho), mas também o medo da perda do outro medos esses que adquiriam, todavia, diferentes expressões consoante o tipo de espaço público e sua representação (Castro Seixas & Giacchetta, 2020).
Lembro-me de ter ficado feliz, findos esses períodos de confinamento, por ouvir de novo os gritos alegres das crianças que brincavam no recreio de uma escola próxima de minha casa, numa das avenidas principais de Sesimbra, onde eu vivia na altura. Que falta me fizeram aqueles gritos, percebi então! Quando ali passava e tudo era silêncio, era como se alguma coisa não estivesse bem. E de facto muita coisa não esteve bem nessa altura, e as crianças foram particularmente afetadas com a pandemia, pela ansiedade dos seus pais e cuidadores, pelo fecho das escolas e a impossibilidade de estarem (fisicamente) com os colegas, amigos, professores e outros familiares, e pela restrição do espaço de brincadeira às quatro paredes da casa, colocando em causa o seu direito a brincar ao ar livre e a usufruir da natureza (Castro Seixas, Gonzalez, Fernandes-Jesus, & Castro Seixas, 2022).
Lembro-me de passar uma vez pela mesma escola – uma escola pré-primária – e de ouvir os gritos das crianças a chamarem-me, batendo nas grades da vedação com grande barulho para se fazerem ouvir. Elas queriam que eu lhes desse a bola que tinha saltado para fora da vedação. Na altura pensei, divertida, que as crianças não tinham nenhum problema em se fazerem ouvir e conseguir o que queriam. De facto, as crianças podem fazer-se ouvir, se as quisermos escutar. Como já foi amplamente reconhecido pelos estudos sociais da infância, uma das principais dificuldades de se fazer investigação com crianças é a de nós, adultos, conseguirmos aproximarmo-nos do universo simbólico, formas de linguagem e modos de interação com o mundo das crianças, para as podermos efetivamente escutar (eg.: Valentine, 1999 ). Mas há também que darmos importância ao que as crianças têm para dizer, ou seja, reconhecer e valorizar as crianças como atores sociais e políticos e integrá-las nos processos de construção das políticas públicas que as afetam diretamente. Tudo isto é muito fácil de se dizer e tem sido repetido por vários autores dos estudos da infância, mas muito mais difícil é a sua implementação. Embora exista uma teorização acerca do que seria uma cidade das crianças (eg.: Tonucci, 2018), na prática, o que tem sido feito deixa bastante a desejar, principalmente pelo caráter temporário e por vezes meramente simbólico de muitas destas iniciativas, a consistente exclusão das crianças mais novas das mesmas, a manipulação e o tokenismo das crianças e a cooptação política do programa ‘Cidades Amigas das Crianças’ da UNICEF (e.g., Ataol et al., 2019; Bartlett, 2005; Corsi, 2002; Hart, 1997; Castro Seixas, 2022; Castro Seixas & Fernandes-Jesus, 2022).
Construir uma cidade das crianças implica fazer esse trabalho com as próprias crianças e também com os adultos, porque “uma cidade boa para as crianças é também uma cidade em que as famílias têm acesso a estruturas de saúde que realmente funcionem, a uma habitação decente e a um trabalho que lhes garanta uma vida digna e lhes possibilite condições (recursos de tempo, energia e estruturas) para usufruírem da cidade com as suas crianças” (Castro Seixas, 2022). Importa não esquecer esse duplo movimento de nos aproximarmos do universo das crianças para as escutarmos e simultaneamente de as levarmos a sério nas suas propostas, como sujeitos políticos que são de direito (Castro Seixas, Tomás, & Giacchetta, 2022). Importa ainda pensarmos a cidade não como um conjunto de (infra)estruturas disponíveis, mas como lugares de convivência através da diferença. O conceito de infraestrutura tem sido recentemente amplificado, indo muito para além da materialidade (Vidal & Castro Seixas, 2022), mas, abrangendo quase tudo, arrisca-se talvez a perder o seu significado. Por outro lado, se pensarmos que as infraestruturas da cidade são também pessoas (Simone, 2004) e analisarmos as práticas informais de uso e apropriação do espaço público pelas crianças e suas famílias, melhor conseguiremos captar a produção quotidiana do espaço urbano e a relação das crianças com a cidade.
Gostava, porém, no âmbito deste micro-ensaio de pensar a ideia de uma cidade das crianças a partir de um outro ponto de vista, com base num exercício de imaginação radical oposto, o de imaginar uma cidade, ou se quiserem, uma localidade qualquer, sem crianças. Talvez esta imagem traga à memória alguns filmes de ficção científica, ou mesmo alguns casos reais de localidades portuguesas tão envelhecidas que poucas ou nenhuma criança lá vivem. De qualquer modo, penso que a imagem de um tal lugar esvaziado de crianças nos sugere sempre tristeza, desolação e desesperança, mesmo quando não está em causa o fim da humanidade, como por exemplo se retrata no filme Children of Men de Alfonso Cuarón, com Clive Owen e Julianne Moore, em que o cenário das cidades está perigosamente próximo da nossa realidade, exceto nessa questão da infertilidade e ausência de nascimentos.
No entanto, mesmo que não nos deparemos atualmente a nível global com o problema da infertilidade, sendo pelo contrário a superpopulação a questão principal, o envelhecimento das sociedades ocidentais é uma realidade. O exercício que propus fica talvez mais fácil se considerarmos, como vários autores dos estudos sociais da infância têm vindo a observar o modo como os espaços públicos urbanos das cidades ocidentais se têm vindo a esvaziar de crianças (eg: Leverett, 2011; Sarmento, 2018). Esse esvaziamento não é, todavia, total, nem uniforme, sendo pautado por diferenças de etnia e classe social, notando-se até tendências opostas de práticas emergentes de ‘consumo da cidade’ pelas famílias de classe média (Karsten & Felder, 2015). Mais importante, esse esvaziamento não é uma inevitabilidade, podendo ser reversível através de políticas públicas, desde que estas sejam construídas com as crianças e em diálogo com os cientistas sociais que estudam a relação das crianças com a cidade. Mas o que se pretende não é apenas que as crianças voltem aos espaços públicos, mas sim construir espaços públicos que sejam convidativos para todas as crianças e também para os adultos que as acompanham.
Não me parece possível que tal projeto de cidades das crianças – coloco no plural pois trata-se de uma ideia que, embora com princípios e valores centrais, muito ancorados nos direitos das crianças, tem de ser pensada e desenhada especificamente para cada contexto social – se possa alavancar com base em indicadores gerais abstratos de sustentabilidade social e ambiental, muito em voga atualmente. Talvez alguns de vocês não ouçam e vejam como eu ouço e vejo, no bairro onde vivo atualmente em Setúbal, as crianças a brincarem na rua. Trata-se de um bairro pobre, com vários problemas a nível social e ambiental e bastantes conflitos e não posso dizer que as ruas sejam particularmente agradáveis e convidativas para brincar e conviver. No entanto, as crianças brincam e os adultos convivem, juntamente com os cães e gatos que aí vivem. Fazem-no claro está, independentemente de qualquer ranking de sustentabilidade dessa rua/bairro ou cidade e alheias a tais classificações, em que não participam e onde não se reveem. Dei este exemplo apenas para realçar a importância de uma análise do quotidiano informal, das práticas sociais, assim como da emergência de fenómenos de hiperlocalismo e seu significado no contexto atual, para uma compreensão da relação das crianças com a cidade.
Mas imaginem agora que na cidade ou localidade onde vivem não há de todo crianças visíveis, nem nas ruas, nem nos jardins, parques, praças ou transportes públicos. Que lugar triste seria esse! Que pesadelo! Percebemos então quão especial é quando as crianças podem interagir e brincar nos espaços públicos da cidade. Chawla aponta como uma necessidade fulcral das crianças: “a necessidade de um espaço indefinido onde os jovens possam formular seus próprios mundos” (1992, p. 69). Este seria um espaço de liberdade e de criatividade, que permitiria à criança testar a sua independência e a sua capacidade de manipulação do meio, podendo hipoteticamente ser potenciado pelas caraterísticas de maleabilidade/manipulação dos espaços físico e sociopolítico, sendo por isso mais provável em espaços subregulados e caraterizados pela improvisação e incompletude (Castro Seixas, Tomás & Giacchetta, 2020, p. 141).
Quão importante é por isso que as crianças, movendo-se entre os seus espaços secretos e um espaço partilhado com os adultos, possam concretizar a sua necessidade de espaços indefinidos de liberdade, contribuindo inclusive nesse processo, para a desconstrução de imagens redutoras da infância e subvertendo binómios culturais como os de natureza/cultura, animais não humanos/animais humanos Mas apenas se nós os adultos as deixarmos, pois somos em grande medida responsáveis pela alienação das crianças em relação ao espaço urbano, fruto em grande parte do nosso “receio da conquista da autonomia das crianças e dos jovens e, ao mesmo tempo, o controlo da sua segurança” (Neto, 2020, p. 183). Por outro lado, não nos podemos esquecer que “as imagens de infância que se constroem e reconstroem cotidianamente (…) dependem da dialética entre o espaço concebido, o espaço percebido e o espaço vivido – os componentes da tríade do espaço proposta por Lefebvre (1974)”, podendo por isso adquirir sentidos inesperados e disruptivos (Castro Seixas, Tomás, & Giacchetta, 2022, p. 82).
Eunice Seixas*
Setúbal, 28 de setembro de 2022
Publicado a 12-10-2022
*Eunice Castro Seixas é Doutorada em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, com uma especialização em “Pós-Colonialismos e Cidadania Global” (2013), com Licenciatura e Mestrado na Psicologia da Saúde e Psicologia Social. Coordenou o projeto CRiCity – “As crianças e o seu direito à cidade: Combater a desigualdade urbana através do desenho participativo de cidades amigas das crianças”, financiado pela FCT. Para além duma vasta experiência em investigação, com publicações nacionais e internacionais, trabalhou na docência e na psicologia. Atualmente trabalha como psicóloga clínica e formadora de yoga. E-mail: euniceseixas@gmail.com
Referências
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Castro Seixas, Tomás, C. & Giacchetta, N. (2022). A produção social da infância nos parques urbanos de Lisboa. In M. Gobbi, C, I. dos Anjos, E. C. Seixas & C. Tomás (Orgs.), O direito das crianças à cidade: Perspectivas desde o Brasil e Portugal, pp. 67-89. FEUSP. https://doi.org/10.11606/9786587047317
Castro Seixas, E. (2022). Questões para uma análise transdisciplinar do direito das crianças à cidade.” In E. C. Seixas, P. C. Seixas e J. T. Lopes (Orgs.), O direito das crianças à cidade. Estudos sobre as cidades de Lisboa e do Porto. Editora Mundos Sociais (no prelo).
Castro Seixas, E., Gonzalez, S., Fernandes-Jesus, M. & Castro Seixas, P. (2022). “Relatos do confinamento e do desconfinamento das crianças: Contingências da pandemia ao nível das práticas digitais, do contato com a natureza e do regresso ao espaço público”. In J. M. C. Ferreira (Coord.), Contingências da Pandemia gerada pelo Covid-19 nas Sociedades Contemporâneas. SOCIUS & Clássica Editora. ISBN: 978-972-561-466-2.
Castro Seixas, E., Tomás, C. & Giacchetta, N. (2020). Os jardins/parques urbanos de Lisboa pelo olhar de adultos e pela ação das crianças. Práxis Educacional, 16(40), 134-163. ISSN 2178-2679. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i40.6890
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Karsten, L. & Felder, N. (2015). Parents and children consuming the city: Geographies of family outings across class. Annals of Leisure Research, 18(2), 205-218. https://doi.org/10.1111/tesg.12055
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LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Setúbal
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