O que é a cidade?
Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel)
Baudelaire (1860/1961, p. 81)
“A cidade” (1960), obra do artista norte-americano Alexander Calder (Filadélfia, 1898 – Nova York, 1976), adquirida, em 1960, pelo Museu de Belas Artes de Caracas, concilia duas ideias aparentemente contraditórias: a de dinamismo ou movimento e a de estaticidade.
Parte da série dos stabile-mobile [1], iniciada por Calder em 1940, a obra “A cidade” (figura 1) combina a paixão de Calder por figuras móveis — os móbeis, pelas quais é conhecido — e que integram o interesse do artista pela fugacidade, imprevisibilidade, instabilidade e pelo acidental ou aleatório, com o seu interesse pela compacidade, a solidez e a monumentalidade.
Trata-se de uma estrutura composta por grandes placas de ferro e aço pintadas de preto, firmemente enraizadas na terra, com picos irregulares, montadas e dispostas em planos que se intersetam entre si. Num dos topos desses picos, pende suspensa uma estrutura metálica, composta por formas circulares brancas de diferentes tamanhos e densidades, separadas e articuladas por hastes que lhes permitem flutuar no espaço e circular livremente, produzindo efeitos mutáveis em função da luz. Estes pequenos elementos geram um contraste visual quando justapostos ao volume e massa sugeridos pelas grandes lâminas negras e, à medida que oscilam, pela ação do vento, propõem relações diferentes com os outros elementos do seu universo (Salvador, 1988).
A oposição dialética que carateriza este objeto, dada pelo jogo antitético do estático e dinâmico, do equilíbrio e da assimetria, serve de inspiração para propormos uma leitura da cidade como uma obra de arte. Não uma qualquer obra de arte, mas uma obra de arte aberta. Aberta, no sentido dado por Umberto Eco, quer dizer, uma obra que nunca está completa, “pois a cada fruição a obra revive dentro de uma perspetiva original” (1989, p. 40); e aberta, no sentido dado por Sennett (2018), uma obra que não pode ser produto de uma única visão, dos desejos e vontades bem intencionados dos múltiplos especialistas do fenómeno urbano, mas antes abraçar a diferença, a complexidade, a dificuldade e prosseguir a porosidade e a flexibilidade. Enquanto tal, a cidade configura-se como um encontro entre condições materiais particulares, permanentes e duráveis e experiências e práticas efémeras e sempre renováveis, num equilíbrio instável, tal como o encontro na “Cidade” de Calder entre as grandes placas de ferro e aço pretas e as formas circulares brancas que se movem graças à ação do vento.
Trata-se de um equilíbrio que pode, porém, ser trabalhado no sentido de albergar a coexistência de formas de vida e socialidades distintas, geradora de reconhecimento e comunicação. Nesta visão, que expressa um futuro desejável e decorre de uma ausência, a cidade ergue-se como um campo de possíveis (Certeau, 1998; Lefebvre, 2001), uma realidade em constante transformação no tempo e no espaço, em que a experiência urbana é organizada pelo que é vivido, pela vida com o outro e onde as práticas individuais desempenham um papel crucial.
As buscas em torno de tal ideal, difíceis e complexas, ganhariam com a integração “dos significados próprios dos fragmentos não convencionais da urbanidade” (Fortuna, 2019, p. 146), incorporando a cidade sensível, a teia de emoções e sentimentos dados pelo viver urbano, bem como com a incorporação de utopias, esperanças, desejos e medos, individuais e coletivos que esse viver de forma coletiva e em proximidade despertam.
O interesse crítico nas camadas sensíveis presentes na constituição do espaço urbano (Thibault, 2012) passa por uma observação atenta das particularidades que percorrem o “movimento permanente do fazer-cidade”, os “espaços precários da margem” (Agier, 2015) ou as “periferias desqualificadas” (Fernandes & Mata, 2015), assim como das apropriações espontâneas informais e usos quotidianos da cidade, fenómenos produtores de urbanidades que escapam ou extrapolam os limites do cálculo.
A atenção ao sensível, aos “fios delicados e invisíveis” de que Simmel fala no ensaio sobre impressões sensoriais e interação urbana (1997, p. 120), essencial para uma compreensão aprofundada da pluralidade de urbanidades (Netto, 2013) que impregnam a cidade contemporânea, faz parte da vocação da Passeio, o projeto do CECS que enquadra este pequeno excurso. Como nos dizem os autores do projeto, a Passeio, uma plataforma de arte e cultura urbana envolvida no resgate das experiências comuns dos habitantes da cidade, com especial interesse no corpo passeante, está particularmente vocacionada para explorar criticamente “os momentos em que o olhar anónimo, as pequenas narrativas do transeunte comum e as vivências alternativas da cidade no seu quotidiano desafiam o arquivo do especialista e as categorias das suas instituições, o caleidoscópio do turismo e a repetitiva seriação dos seus must-see, ou ainda a esfera dos média e a eventual uniformidade dos seus agendamentos” (Correia, Pires & Andrade, 2017, p. 179).
O interesse pela captação e restituição dessas formas efémeras e perecíveis que teimam em não se fixar, como os efeitos mutáveis das esferas brancas de Calder, mesmo não sendo uma questão nova e envolva todo um conjunto de dificuldades empíricas bem conhecidas e discutidas, ao devolver a concretude da experiência urbana e o fazer-cidade dos que as habitam, permite desenhar uma cidade múltipla, uma outra cidade que traz com ela o desejo de a habitar.
Referências
Agier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21(3), 483-498. DOI: 10.1590/0104-93132015v21n3p483
Baudelaire, C. (1860/1961). Les fleurs du mal (pp. 81-83) Paris: Gallimard.
Certeau, M. (1990/1998). Práticas de espaço. In M. Certeau, A invenção do quotidiano. Artes de fazer (pp. 169-220). Petrópolis: Ed. Vozes.
Correia, M. L.; Pires, H. & Andrade, P. (2017). Passeio, passante, passeante. Uma plataforma de arte e cultura urbana. Revista Lusófona de Estudos Culturais, 3(2), 167- 183.
Eco, U. (1962/2016). Obra aberta. Lisboa: Relógio D’Água.
Fernandes, L. & Mata, S. (2015). Viver nas “periferias desqualificadas”: do que diz a literatura às perceções de interventores comunitários. Ponto Urbe, 16, 1-19. DOI: 10.4000/pontourbe.2658
Fortuna, C. (2019). Urbanidades invisíveis. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 31(1), 135-151. DOI: 10.11606/0103-2070.ts.2019.151257
Lefebvre, H. (1968/2001). O direito à cidade. São Paulo: Centauro.
Netto, V. M. (2013). A urbanidade como devir do urbano. EURE (Santiago), 39(118), 233-263. DOI: 10.4067/S0250-71612013000300010
Salvador, J. M. (1988). Alexander Calder. La ciudade 1960. In J. Dorronsoro (Ed.), Arte de América. Selección de obras de la colección (pp. 44-45). Caracas: Museo de Bellas Artes.
Sennett, R. (2018). Building and dwelling: ethics for the city. Londres: Allen Lane, Penguin.
Simmel, G. (1907/1997). Sociology of the senses. In D. Firsby & M. Featherstone, Simmel on culture: selected writings (pp. 109–120). Londres: Sage.
Thibaud, J.-P. (2012). A cidade através dos sentidos. Cadernos Proarq. Revista de Arquitetura e Urbanismo do Proarq, 18, 1-16. Retirado de https://cadernos.proarq.fau.ufrj.br/en/paginas/edicao/18
[1] Stabile, neologismo proposto pelo artista Han Arp, 1886-1966; mobile, neologismo proposto por Marcel Duchamp, 1887-1968.
Referências sugeridas
- Uma obra/texto literários: Queirós, E. de. (1901/2001). A cidade e as serras. Lisboa: Editora Ulisseia.
- Uma peça sonora: Reed, L. (1989). New york [CD]. Nova Iorque: Sire Records.
- Uma obra cinematográfica/filme/documentário: Rosselini, R. (Realizador). (1945). Roma città aperta [Filme]. Itália: Excelsa Film.