O que é a cidade?

O que é a cidade, ou quem parasita quem?

 

A cidade é encontro; é contacto, visual, físico, emocional; é oportunidade e criação; é habitat da maior parte de nós, humanos; é a mais complexa criação humana. Mas também é separação; lugar de compartimentação, de muros e de exploração; miséria absoluta, anomia e indiferença; é a mais falhada das criações humanas. É tudo e nada, utopia e distopia, e tudo o que que está entre os polos opostos deste espectro. É nesta completa ambivalência que a sinto, eu que a vejo de um ponto de vista privilegiado, seguro, higienizado, exclusivo, e que me permito apenas fazer breves excursões a outras cidades que existem na(s) minha(s) ou a outras que me são tão distantes, outras que aparentemente nada têm haver com a que habito, que me parecem outros mundos. Poderia seguir múltiplos caminhos para desenvolver o meu ponto de vista ambivalente sobre o que é a cidade. Decidi subverter o requisito de pensar “o que é a cidade para mim”, deixando como referência um livro, um filme, e uma peça sonora, e ao invés, sublinhar, através da análise de um filme, de uma fotografia e de um livro, apenas uma dimensão das cidades contemporâneas em que reflito frequentemente: a desigualdade social e espacial e os processos de expulsão e despossessão que assolam cidades do norte e do sul global. Para o efeito, utilizo o argumento do filme Parasite (2019) de Bong Joon-ho, apresento uma fotografia de Seul, diretamente relacionada com o filme, e convoco a narrativa do livro A Fine Balance (1995) de Rohinton Mistry.

 

Parasite

Em 2019, Parasite recebeu o galardão de melhor filme da academia de Hollywood. Realizado pelo sul-coreano Bong Joon-ho, o filme apresenta, em tom satírico, duas faces de Seul através de uma mise-en-scène que coloca em forte oposição o mundo da sub-cave dos Kim, uma família disfuncional e em graves dificuldades financeiras, e o mundo seguro, restrito, tranquilo, aprumado, ordenado, clean, dos Park, uma família não menos disfuncional, mas de classe alta. Apesar de haver um aparente divórcio entre estes dois mundos da mesma cidade, eles ligam-se inexoravelmente através das relações de trabalho, à medida que a família da subcave se vai empregando na abundância doméstica da casa de arquiteto da família rica. O filme retrata, quase comicamente, mas de forma ambígua, um processo de parasitismo, que é mais transparente visto através da colonização dos ricos pelos pobres, que são como sangue-sugas, do que vice-versa. Mas quando parece que vamos ficar presos a este binário redutor, em que não se questiona o rendimento do patriarca Park enquanto CEO de uma empresa tecnológica, e de como a acumulação de riqueza materializada numa casa a meio caminho entre a instalação de arte e a fortaleza, surge na cena uma outra família, cujo sobrenome não vimos sequer a saber. A sub-cave dos Kim é rapidamente ultrapassada por um bunker na casa dos Park, onde há anos vive o marido da antiga empregada destes, fugindo às dívidas impagáveis e ao fisco. O triângulo completa-se assim subtilmente, apontando não só para os vínculos que unem classes desiguais, que vão sendo cinzelados através da opressão e injustiça do sistema capitalista, e através da perversa imobilidade social, presente nos 564 anos que levaria aos Kim a juntar dinheiro para comprar a casa dos Park.

A cidade, mais do que qualquer outra criação humana, produz e reproduz estas inescapáveis desigualdades sociais e espaciais. A cidade é o lugar escolhido, e absolutamente necessário e vital para a reprodução e fixação de capital. À primeira vista, o setting de Parasite, em Seul, na Coreia do Sul, não impressiona muito, e talvez a narrativa se encaixasse melhor em Los Angeles, Nova Iorque, Joanesburgo ou São Paulo, cidades bem mais desiguais. Mas o sucesso económico e rápida urbanização das últimas décadas em Seul mascara processos que, apesar das suas particularidades, servem fins semelhantes. A área ou bairro de Seul que encaixa com a descrição da casa dos Park, é Pyeongchang-dong, nas colinas verdejantes de Bugak, no norte da cidade, onde vivem as celebridades do país, área repleta de habitações unifamiliares espaçosas, com vários pisos e ao estilo americano. Por seu lado, a sub-cave dos Kim, numa área degradada de classes trabalhadoras, é sugestiva de algumas características das aldeias urbanas de Poi ou Guryong. Estes enclaves de assentamentos urbanos na área exclusiva de Gangnam são exemplo da justaposição de pobreza urbana e luxo, e levantam inevitáveis interrogações sobre a natureza da urbanização conduzida ou consentida pelo Estado. Poi e Guryong resultaram de uma primeira fase de programas estatais de relocalização, regulação e controlo de um conjunto de pessoas “indesejadas” na cidade – órfãos, sem abrigo e outros indigentes – que teve lugar no final dos anos de 1970, e de uma segunda fase de expulsão, poucos anos mais tarde, relacionada a sanitização da cidade para os Jogos Olímpicos de 1988.

Paradoxalmente, estes habitantes, expulsos das suas origens, e a viver em condições miseráveis, deslocavam-se em transportes públicos para o centro da cidade, sobretudo para exercer tarefas como lixeiros, varredores de rua e recoletores de materiais para reciclagem, concorrendo para o asseio, higiene e civilidade da cidade aberta à especulação imobiliária e promotora de uma imagem global de progresso e modernidade. Sujeitos a vigilância apertada, à brutalidade policial e a confinamentos cirúrgicos, acabaram por sofrer pressões para sair e foram expulsos, pois o rápido desenvolvimento urbano, em Gangnam, não podia parar. De Haussman em Paris, a Robert Moses em Nova Iorque, a violência é usada como inevitável e necessária para construir o novo mundo urbano sobre os destroços do velho. A este processo, de urbanização capitalista, David Harvey chama de acumulação por despossessão.

 

Figura 1: A brutalidade do poder na abordagem tabula rasa do desenvolvimento urbano em Gangnam, Seul (autor, 2015)

 

A Fine Balance

Deparei-me com muitas trajetórias para dar o salto deste filme e fotografia para um livro, mantendo a discussão neste plano. No domínio académico, pensei no Le Droit à la Ville de Henri Lefebvre (1968) e em Rebel Cities, de David Harvey (2012), passando por Uneven Development. Nature, Capital and the Production of Space, de Neil Smith (1984). As possibilidades são imensas. Estas obras permitir-me-iam discutir não só as cidades como as mais engenhosas criações humanas, como motores de transformações sociais, como lugares de acumulação de capital, de comando e controlo financeiro da globalização, e lugares-chave no acentuar de desigualdades sociais e espaciais. Mas pela liberdade que aqui tenho, optei por me afastar de uma fonte constrita à estrutura académica e considerar o romance A Fine Balance, de Rohinton Mistry, publicado em 1995. A narrativa tem lugar numa cidade não identificada na Índia e foca o percurso intricado de quatro personagens, durante o ano de 1975. O livro é rico em detalhes e descrições minuciosas da vida destas personagens, que em comum têm o facto de serem, de formas distintas, fugitivas de algo e de estarem encarceradas numa cidade. Maneck foge das montanhas, rasgadas que foram por novas estradas e “progressos”, e acaba por ser forçado a estudar na cidade, procurando tornar-se especialista em refrigeração e ar condicionado. Ishvar e Om quebram a barreira de castas que lhes ditava serem curtidores de peles e tornam-se alfaiates, exilando-se também na cidade. Na sua terra, o encerrar da loja de pronto-a-vestir deixou-os sem emprego. Por fim, Dina, oriunda de uma classe privilegiada, perseguida por infortúnios familiares sucessivos, acaba por trabalhar como desenhadora de padrões têxteis para a empresa Au Revoir Exports. Mistry, retratando a nação das aldeias, conta-nos que, com o passar do tempo, as quatro personagens vão convergir na casa de Dina. O tempo é o controverso período do estado de emergência do governo de Indira Gandhi, que durou quase dois anos, entre 1975 e 1977. A emergência baseava-se no facto de existirem supostas ameaças internas e externas ao Estado Indiano, e veio permitir uma governação por decreto, a suspensão de todo o género de liberdades civis, e a suspensão de eleições. Foi neste período que o slum onde viviam Ishvar e Om foi demolido, para dar lugar a um programa de “embelezamento” da cidade (à semelhança do “gueto do mágico”, na obra de Salman Rushdie Midnight’s Children). Não havendo direito a compensações, devido à génese ilegal do assentamento, depois de várias peripécias, Ishvar e Om acabaram a viver em casa de Dina. Mas este momento de casa-oficina-indústria caseira também foi fugaz, pois a subida de renda e a posterior quebra do contrato de arrendamento forçaram Dina a ir viver com o irmão. Ishvar e Om, após caírem vítimas do programa de esterilização em massa do governo indiano, acabaram nas ruas. Maneck, que conseguiu obter um certificado dos seus estudos técnicos, regressou brevemente às montanhas, mas por falta de oportunidades, emigrou para o “lucrativo” Dubai, juntando-se aos milhares de outros trabalhadores asiáticos que aí constroem cidades para outros.

 

Figura 2: Capa do livro A Fine Balance de Rohinton Mistry

 

Enquanto o crescimento económico da China e da Índia da última década levaram a uma quebra das desigualdades globais, as disparidades económicas nesses países acentuaram-se fortemente. Em 2018, a fatia dos 10% mais ricos da população na Índia detinha 80% da riqueza. Apesar do crescimento económico médio anual da última década ser de 7%, a percentagem de trabalhadores nos setores informais ultrapassa os 90%. As cidades indianas são hoje, mais do que nunca, lugares de grande desigualdade que vão criando, não fugindo a um padrão urbano global, áreas urbanas divididas e propensas a conflitos. Bombaim, na tentativa de rivalizar com Xangai como um dos centros financeiros globais, encontra-se hoje em processo de limpeza e despejo forçado de bairros degradados. O boom e a especulação financeira, que fazem aumentar desregradamente o preço do solo ocupado por milhões de pessoas, são mais fortes do que os direitos básicos e a justiça espacial. Para além de podermos medir a pobreza de forma absoluta ou de forma relativa, podemos olhar para ela de forma relacional. Esta última forma de entender a pobreza defende que as pessoas são pobres por causa de outras que têm o controlo sobre si, destacando-se assim questões de poder e privilégio. Defende-se que a pobreza só se compreende através dos padrões de relações humanas, e através das instituições que organizam essas mesmas relações. Nesta perspetiva, as intervenções e políticas que procuram aumentar a equidade e a mobilidade social não podem ter sucesso se forem desacompanhadas de questões mais vastas de justiça social e espacial, e de uma profunda mudança do sistema capitalista global. Afinal, completando o círculo e regressando ao filme Parasite, quem é que neste fino equilíbrio urbano são os parasitas?

 

João Sarmento

 

Referências

Joon-ho, B. (Realizador). (2019). Parasite [Filme]. Coréia do Sul: CJ Entertainment.

Mistry, R. (1995).  A fine balance. Canada: McClelland & Stewart.