O que é a cidade?
Cidades perdidas
Divagava pelas cidades, vestindo a sensação de se perder no labirinto das ruas que vinham ao seu encontro. Nunca conseguiu compreender qual era o fluir, mas pouco se importava com essa questão. Preferia pensar no momento, moldado pela circunstância do presente instante, que se ia definindo. Enquanto caminhava, pensava sempre nas cidades invisíveis, como uma tentativa de as refazer e como os arquitetos espelham os sonhos, em espaços de memória, desejos, sinais e outros lugares que ele sempre tentava construir. Então, esvaziava-se de tudo, fixando-se apenas numa frase que marcara a sua existência: viver é confrontarmo-nos com coisas vagas.
Chegado à cidade, quis deambular pelas ruas incertas, tal como sempre fizera, sentindo o Zeitgeist em toda a sua plenitude artística, filosófica e cultural. Porém, desta vez decidiu construir um diálogo que pudesse refletir a vivência do tempo presente. Logo notou que seria uma interação repleta de contradições, lembrando-se que a metrópole era embriaguez perpétua de efeito narcótico, autojustificando, assim, as hipérboles mentais que pudesse construir na sua viagem. Quis, então, libertar-se de todas as amarras, dividindo-se em duas partes que pudessem expressar a plenitude do ser perante o tempo, o não-lugar, o vazio, a ausência e a solidão. Complementarmente, em sinal de esperança, quis também enaltecer o lugar, a memória, o encontro, a aventura, o amor e o devir. Uma dessas metades designou por Orfeu, a outra por Eurídíce, em memória da mitologia grega, na qual se espelhava para sustentar a sua própria existência.
Orfeu
Sempre percorro as avenidas, ruas e praças para me encontrar na cidade, como quem procura uma emoção através da poesia, música e arte. É esta dádiva que agora me escapa. Aqui parado na linda praça, cheia de ninguém, espraio o olhar procurando sinais num espaço vazio. Em reprodução mental revejo O Grito, no qual todos somos protagonistas, transbordando desespero e angústia, através da expressividade das linhas que contornam a cidade não-cidade. Neste turbilhão de ausência que contigo partilho, Eurídíce, vem-me à memória uma frase batida, hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas.
Eurídíce
Dias de cruzar uma cidade que nem em sonhos sonhei, como diria o Quintana, na minha infância e nos seus Quintanares, tão perto e tão longe… A cidade do meu andar, do meu vagar, na leveza do flâneur, fragmentada e errante por entre ruas imaginárias, caminhos que se cruzam, que me levam a todos os lugares e a lugar algum… ah, eu também queria, tal qual Baudelaire, fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito …mas cá estou, na minha passagem, também de passagem… nesse não-lugar que, afinal, é o nosso espaço…
Orfeu
Sim, que dizer da cidade neste tempo vazio, num espaço não-espaço moldado pela ação demoníaca de um ser invisível, pondo à prova a suposta indestrutibilidade da humanidade? Tempo incerto este, diluído, sem paradigmas, que te anunciem: é por aqui! Mesmo que por ali não fosses! Sim, afinal que guerra é esta que confinou a nossa existência? Onde estão os misseis e os canhões do inimigo que percorrem um caminho de destruição física, mental e simbólica? Onde está a tecnologia das proezas microscópicas e interestelares? Onde está um caminho, um só que seja?
Hefesto!! Ilustre ferreiro do Olimpo, que criaste a égide vitoriosa de Zeus, inventa o escudo da nossa proteção. Faz reviver a fantasia e devolve-nos, parte que seja, a cidade inquieta, misteriosa e sedutora.
Eurídice
O caminho está em novas redes de sentido, muito além das calçadas intocadas de um mundo asséptico que nos surge através de telas, véus e máscaras. A cidade líquida e flutuante não nos concede anticorpos para a solidão e a alma acometida pelo vírus do esquecimento, da poeira e das ruas onde não mais andaremos, condenados ao não-lugar, suspensos no vazio. Ou mergulhados! Não estamos imunes à solidão dos espaços vagos, ainda que exista vida para dentro das janelas da nossa alma. Para fora são outras janelas, outras vidas, subprodutos de um contexto, de um acúmulo de vivências e ideias que tecem os habitantes da cidade, neste confinamento involuntário dos sentidos. Ausência e silêncio substituem a esperança e o riso despreocupado nas esquinas onde não se separa ou se encontra mais ninguém. Mesmo os deuses se foram, ou trocaram de identidade, em outro espaço-tempo, numa sociedade agora fluida e fragmentada, reflexo do mosaico urbano, cheio de perigos. Como em The Hunger, também temos fome de viver, mas sequer podemos olhar para trás, pois tudo o que conhecemos, já não existe. Um caminho, um alento e um novo sentido, é só o que pedimos. Que extrapole o que o olhar capta, saciando a fome, como o fluir da vida, onde tudo muda incessantemente.
Orfeu
Sim, como compreendo essa tua inquietude, que mais não é que um retrato focalizado de uma realidade difusa, que nos mergulhou nas trevas da ausência de tudo, esse tudo que virou passado. Talvez por conveniência de algum deus maléfico, quem sabe, a invisibilidade teve alentos de protagonismo, querendo a expropriação do olhar, esse primeiro contacto com o mundo. Na cidade, esse olhar devolve-nos uma linda praça com torre ali ao lado; um rio imponentemente calmo serpenteando as encostas lá ao fundo; uma rua íngreme que alberga lojinhas de proximidade, ah, e os sorrisos! Sim, os sorrisos, galanteios e gestos de felicidade dos transeuntes com os quais nos íamos cruzando nas nossas deambulações…
Ohh, como me empolgo quando a memória se inunda da cidade e dos seus encantos de outrora… Mas, para além da ausência dessa cidade que falava, o mundo parece ter-se dissipado ou, como dizes, diluído, numa catadupa de perversidades que, embora parcialmente anunciadas, por olhares do futuro, não teve nunca holofotes de reconhecimento. Agora, resta-nos contemplar, sentindo de perto, por vezes, as trevas.
Ao que dizem, os homens das civilizações tradicionais defendiam-se da história, abolindo-a periodicamente graças aos rituais do mito e à regeneração periódica do tempo. Rogo, então, Deuses do Olimpo, nossos guardiões ancestrais que uma vez mais invoco, que nos devolveis, uma possibilidade de reconquista de um normal com contornos de humanidade.
Eurídice
Compactuo da tua nostalgia, Orfeu, do velho mundo que habitamos e que, de repente, desmaterializou-se diante dos nossos olhos, como que prevendo uma necessária reconstrução, de novas possibilidades e formas de viver, que reconectem sonhos e que joguem luz onde se possa ver o essencial, o que nos devolve a humanidade e o que realmente importa neste caleidoscópio de sensações e emoções chamado vida!
Escuto Glück ao longe, como que pontuando nossa saída desse não-lugar, e me regozijo com ímpetos de esperança, flanando, sem certezas mas com o coração confiante num recomeço.
Sigo-te, pois nunca desististes de encontrar um caminho. Suave é o mistério da resiliência silenciosa, que nos fez chegar até aqui, serpenteando por atalhos ondulantes, na busca do nosso graal, a cidade invisível mas que já ganha contornos em nossas mentes: talvez seja esse, efetivamente, o regresso ao admirável mundo novo? Será que ainda suportaremos uma sociedade baseada na saciedade dos desejos sem uma busca pela felicidade, já que esta foi criada artificialmente desde o início? Tornemos a andar e andar, deixando para trás as folhas secas do outono, pensando na felicidade em pílulas de Huxley, suas distopias tão atuais.
Sim, eu fugi do jogo no inferno, sob o olhar de Maiakovski, e não me lancei no abismo pois já não há lâmina que me atraia com seu brilho. Enfim cheguei, com a respiração opressa. É justo que descanse agora, neste prado verdejante da esperança, sentindo arrelvar, numa última carícia, teu passo que se apressa!
Orfeu
Falas de música e poesia. Como me encantam essas artes, tal como a pintura, expressão primordial; o cinema, que nos devolveu o movimento; a fotografia, que mecanizou a fixação do mundo em imagens, todas elas artes que a cidade enaltece… Ah!, falta ainda a arte das artes, a vida, e as suas interrogações perpétuas: quem somos, que missão e destino?
Enquanto deambulo por estas paragens sedutoras, escuto também Glück, obra prima que me deste a conhecer numa outra vida e que me leva a percorrer mentalmente caminhos do passado. Aviva-se a memória numa inebriante harmonia de imagens, sons e momentos, marcas que ficam na passagem fugaz e que o tempo teima em desvanecer, sem sucesso.
Esse mesmo tempo que vivemos, tempo da consciência da incerteza, da ausência da convivialidade e da mundialização do medo, mas que deve ser também um tempo de ação. Afinal, “hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”, canta-nos o Sérgio, e essa consciencialização leva-nos à finitude do tempo, mas também à sua reinvenção. Lampejos de felicidade e de fúria de viver parecem assinalar caminhos de fuga e reencontro. Ouço agora So what, invocando Miles, esse profeta do celestial eclético, e plano em paisagens sonoras de regozijo. Mudo de trilha na vertigem do amanhã e rodo Lust for life, do Iggy, destruindo mentalmente esse vírus que nos enlouquece e reclamo “No future!” para a invisibilidade.
Eurídice
Sim, falava eu de música e poesia, tu falas em futuro, em consciência e em ação. Aproveito tua sugestão e também embarco com o Iggy nessa paisagem sonora, eclética e passageira, em direção a um mundo novo, que talvez não seja tão admirável quanto desejável, mas que vale como um belo passeio pelos cantos da cidade que ressurge à noite, ao longe, sob o brilho das estrelas… Queres passear comigo, Orfeu? Passageiros de um novo tempo, quiçá até de um “novo normal”, como se isso fosse possível! Quem sabe relembrar nossas horas, meses, anos? Vamos passear pela cidade sob as estrelas, regozijemo-nos! Nossa vida é um eterno passeio!
E à noite, sonhamos…
Orfeu
Sim, façamos a ronda da noite pela cidade, celebrando a passagem nesse novo tempo que falas. Sejamos cúmplices do presente que se eterniza no esquecimento do devir. Ouçamos então a música no aconchego de um clube que nos embala, liberta e agarra, os poemas do Cesariny e as histórias de vida que inundam a escuridão da noite que nos ilumina. Embriaguemo-nos com a arte, as palavras, os sons e as imagens, que juntos formam o alfabeto da espiritualidade, e convoquemos as estrelas para a celebração, que lá de cima nos fixam com contentamento!
Eurídice
Lá atrás, no início da nossa caminhada, citaste O Grito, e pensei agora se Munch não teria pensado em nós dois, naquele segundo plano, parados na cena, tão perto e tão longe daquela figura andrógena, cuja imagem retorcida, em cores frias, trazem tão nítidas as cores da dor! E se debate em profunda angústia e desespero, sentimentos que vencemos ao longo desta jornada, juntos, onde também cruzamos a ponte que está no quadro, atravessando o lago das sombras e do esquecimento, sob um céu pintado em cores quentes e cálidas, um céu que nos protege e nos aguarda, sem choros, arrependimentos ou gritos. Nosso passeio termina em silêncio. Já não precisamos de palavras. Vencemos a ansiedade, a melancolia, o medo e a morte. Suave é a noite, celebremos com as estrelas nosso tão longo andar, pois já estamos na cidade ofuscante e misteriosa, embriagados pelas palavras, os sons, as imagens. Contudo, não há mais nada a dizer que já não tenha sido dito, os códigos estão abertos, como a vida!
A viagem não terminou! Ela serpenteou as ruelas da cidade, desembocando nas suas lindas praças, algumas com o rio e suas pontes lá ao fundo. Por vezes, fruto da circunstância metamorfoseada em tempos incertos, parecia terminar logo ali para se iniciar de seguida, com mais fulgor e ânimo na absorção da cidade inquieta e cheia de promessas…
E assim se enalteceu um lugar, que são muitos!
Nota dos autores: O presente texto é uma breve meditação sobre a cidade e o tempo que vivemos. É também um exercício de memória pessoal dos autores que reflete alguns dos seus interesses intelectuais, no domínio da literatura, do ensaio, do cinema, da música e das artes em geral. Foram revisitados neste texto: Abraham Moles, Aldous Huxley, Bernard Henri-Levi, Charles Baudelaire, Edvard Munch, Georg Hegel, Nelson Freire, Iggy Pop, Italo Calvino, MaiaKovski, Mário Cesariny, Mário Quintana, Mircea Eliade, Neil Leach, Sérgio Godinho, Tonny Scott e Zygmunt Bauman.
Madeleine Müller & Francisco Mesquita
Referências sugeridas
- Uma peça sonora: Gluck, C. W. (1762/2014). Gluck, mort d’Orphee – Orpheus death piano: Nelson Freire. Retirado de https://www.dailymotion.com/video/x2sd008