O que é a cidade?

Do sonho ao despertar: cidade!

 

O ponto de partida deste trabalho foi a construção de um texto sobre uma cidade-imaginária, intitulado: Do sonho ao despertar: cidade!  no sentido de aproximar-se do objetivo do Projeto, em andamento, Passeário. Nesta direção, apresenta o curta-metragem Cinco Poemas Concretos, de Caselli (2007), uma conexão de imagens e sons que enriquece o referido texto.

O escritor Gonçalo M. Tavares, (2019, p. 404) afirma “as condições atmosféricas do mundo, por exemplo, tornam-se condições atmosféricas da imaginação”. Do sonho ao despertar: cidade! descreve o processo de surgimento e desenvolvimento da Imaginação-Cidade que, por meio da propagação de um relâmpago, flora do chão e enraizada espalha-se como rizoma aparecendo nos aparelhos digitais. Iluminada a gás, a eletricidade, depois pelo digital, de sólidas e, também, pulverizadas construções, a cidade desperta sentimentos e sensações. É susto, espetáculo e fascínio. Situação que lembra a vivência do choque em Benjamin “… os choques e os conflitos diários do mundo civilizado” (Benjamin, 2000, p. 24). A cidade em desenvolvimento, apreciada na curta metragem, citado acima, onde as imagens e os sons reproduzem o ritmo acelerado do tempo passado, presente e futuro, oferece mobilidade, correspondendo à ideia de avanço tecnológico que, mesmo recriada, continua inacabada. Para Rouanet, este cenário “fareja na história a cidade e a cidade na história” (Rouanet, 1993, p. 22).

De acordo com Martins, a cidade é “um espaço tênue, que acolhe formas imaginárias surpreendentes, formas que remetem para traços ou vestígios das metamorfoses por que passa, tanto a nossa civilização, como a nossa memória cultural” (Martins, 2019, p. 304).

Logo, convidamos para este ensaio o flâneur, personagem considerado expressão da história cultural do progresso urbano, presente em Passagens, obra de Walter Benjamin, para nos acompanhar durante este passeio citadino. Andarilho de olhar aleatório e caleidoscópico, ao carregar consigo a experiência histórica passada e presente, o flanêur clareia as trocas entre a cidade e o homem. Portanto, o flâneur benjaminiano, “traz à memória os lampejos da cidade captados através dos sentidos entorpecidos pela modernidade” (Bartolo, 2016, p. 41). Seguindo com Benjamin:

saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro. (Benjamin, 1995, p. 73)

Reflexo das manifestações culturais e sociais do século XIX, com o flanêur é possível alargar a nossa compreensão sobre a cidade e suas transformações sofridas até à contemporaneidade.

Huyssen, em Passados presentes: media, política, amnésia (2014), faz referência  à Modernidade, como promessa de futuro triunfal, a qual modificou a vida das pessoas nas esferas espaço-tempo, cultural, social, política, econômica, das relações interpessoais, das artes, submetendo-as a um modo mais tecnológico e veloz de estar no mundo.

De maneira que, inspirada em imagem-ação de culturas, poéticas, humanas, técnicas, de objetos, de “construções duradouras às modas efêmeras”, a experiência de se estar em andança pela cidade-território foi ressignificada. Segundo Benjamin:

as coisas tornaram-se excessivamente agressivas para a sociedade humana. A “imparcialidade”, o “olhar livre” são mentiras, se não mesmo a mais ingênua expressão de pura competência. O olhar hoje mais essencial, o olho mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se reclamo. (Benjamin, 2004, p. 53)

Para Martins:

hoje, no mundo contemporâneo, a mediação tecnológica, que está na base do processo coletivo de configuração e construção identitárias e também de tecelagem e produção de memórias sociais (que retomam vídeos, filmes, fotografias, cartazes e textos), como compreende novas formas de comunicação digital interativa (que convocam a programação e o design), como compreende, ainda, novas e multimodais textualidades (“hipertextualidades”). (Martins, 2019, p. 305)

No compasso das transformações do tempo histórico-social, diz Manovich:

tentou resgatar o conceito de flâneur ampliando a sua perspectiva. Para ele, as restrições físicas da cidade são, literalmente, superadas na Internet na medida em que o utilizador conseguiu transformar o seu percurso como se a sua rota fosse um espelho de sua própria subjetividade. (Manovich citado em Saturnino, 2012, p. 6)

Trata-se do flâneur virtual, omnipresente uma vez que, através do conforto mediático, a cidade torna-se infinita enquanto ciberespaço e a experiência de vaguear pelas ruas entra em crise.

Neste momento, é interessante fazer um desvio e mencionar que o estudo sobre a cidade levou, segundo Matos (2019), várias disciplinas a ocuparem-se dos sons presentes no espaço, pois proporcionam “experiências significativas aos ouvintes, o que influencia a forma como eles se relacionam com o espaço onde estão” (Fowler citado em Matos 2019, p. 19). Continuando, em Matos lê-se que:

o estudo da Paisagem Sonora surge do meio termo entre ciência, sociedade e artes. De acústica e psicoacústica aprende-se sobre as propriedades físicas do som e como o som é interpretado pelo cérebro humano. Da sociedade aprende-se como o homem se comporta com sons e como eles afetam e mudam seu comportamento. De artes, particularmente da música, aprende-se como o homem cria paisagens sonoras ideais para a vida, a vida da imaginação e da reflexão psíquica. (Schafer citado em Matos, 2019, p. 19)

Assim, os sons no quotidiano da cidade possuem itinerários variados e contribuem para a sua compreensão e investigação de tudo o que a compõe.

Vale ressaltar que não há intencionalidade neste texto em aprofundar o estudo da paisagem sonora nem enveredar pelas consequências da modernidade sobre a cidade e seus diferentes tipos, ou de discutir os diversos olhares do flâneur em andanças, nem mesmo de explorar concepções benjaminianas, por exemplo, de “imagem”, “crise da experiência”, etc. A disposição, aqui, foi semelhante à percepção de Hanna Arendt sobre Walter Benjamin: “um escritor que pensava poeticamente, que não estava muito interessado em teorias ou “idéias” que não assumissem imediatamente a mais precisa forma exterior imaginável” (Arendt, 1987, p. 121).

A propósito, Martins esclarece: “um trabalho artesanal, que artesanal é sempre o trabalho do pensamento (…), levando-nos a percorrer os lugares do invisível do visível, neste trabalho de resistência, onde se estabelece o sentido de comunidade” (2019, p. 306).

Assim, em modo de flâneur, deambular sobre o tema O que é a cidade?  com o pensamento em movimento, olhar e escutar, atenta à relação entre experiência e temporalidade, na vida vivida e imaginada, possibilitou contemplar a sua complexidade e reinventar caminhos para chegar à primeira paragem do Projeto Passeário.

No contexto, a fim de iluminar o processo inconcluso de chegar e partir, fica a música Encontros e Despedidas, do autor Milton Nascimento (1985), e, ainda, à maneira benjaminiana de ir embora: “O Sr. Desajeitado mandou lembranças” (1994).

 

Do sonho ao despertar: cidade!

No alto, os astros organizam um festival.
Num relâmpago, flora do chão, a cidade.
Ora lenda, ora trânsito, ora performance
sonho, iluminada, tortuosa, enladeirada,
alterna desbotados muros e novas armações.
Racha-se o tempo em cintilantes pichações.
Ao redor presença de Línguas, gestos, almas e restos de vidas
à mão ou distantes.
Em conexão,
aparece e desaparece.
Feito rizoma
Misturam-se
cliques, sapatos, sons e sensações povoam a cidade.
Até aonde o olhar alcança,
de uma ponta a outra, sempre um começo.
Recriada.
De novo, a cidade: doa, batiza, embriaga, transforma, devora.
Faz laços e enlaçada, também, desenlaça.
A saber: clara a gás, à eletricidade, digital.
Tempestade!
É susto, espetáculo e fascínio.
Desperta.
Inacabada.
É cidade, novamente!

 

Maria da Conceição de Oliveira Teixeira

 

Referências

Arendt, H. (1987). Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras.

Bartolo, A. C. (2016). Como um relâmpago: uma abordagem do conceito de imagem dialética a partir de Walter Benjamin. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Retirado de http://www.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1412323_2016_completo.pdf

Benjamin, W. (2000). O flâneur. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense.

Benjamin, W. (2004). Imagem do pensamento. Lisboa: Assírio & Alvim.

Huyssen, A. (2014). Passados presentes: media, política, amnésia. Políticas de memória no nosso tempo. Lisboa: Universidade Católica Editora.

Saturnino. R. (2012). O último suspiro do flâneur. Revista de Recensões de Comunicação, 1-10. Biblioteca on-line de Ciência da Comunicação. Retirado de http://www.bocc.ubi.pt/pag/saturnino-rodrigo-o-ultimo-suspiro-do-flaneur.pdf

Matos, M. da C. (2019). Paisagem sonora nos espaços públicos. Estudo de casos na cidade do Porto. Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto, Porto, Portugal.

Martins, M. L. (2019). Por uma ideia de ciência com memória e pensamento. In L. Serva (Ed.), Norval Baitello 7.0 – Homenagem ao Professor Norval Baitello Jr. em seus Setenta Anos (pp. 304- 318). São Paulo: Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC).

Rouanet, S. P. (1993). A razão nômade. Editora UFRj. Rio de Janeiro.

Tavares, G. M. (2019). Atlas do corpo e da imaginação. Lisboa: Relógio D’Água Editore.

 

Referências sugeridas