O que é a cidade?
Verão
ほととぎす今は俳諧師なき世哉
hototogisu / ima wa haikaishi / naki yo kana
Vozes das aves.
Nessas horas, um poeta
não tem mais mundo.
Matuô Bashô (1644 – 1694)
Uma narrativa cápsula. Nesta cidade imaginária, cerzida por fios de nylon, transparentes na textura e condição, sigo a pista de um haiku. Cidades são feitas de detalhes: aquela peça do puzzle que está em falta e impossibilita o fenómeno da paisagem na sua totalidade. Mas os postigos, as frestas também têm lugar na cidade.
Um haiku capta a imagem de uma experiência. Assemelha-se em essência do instante decisivo de Cartier Bresson. A angular da máquina e o olhar do escritor eternizam as mudanças espácio-temporais de um determinado lugar.
Em “Verão”, Matuô Bashô reconhece que, exposto às vozes das aves, o mundo deixa de existir para o poeta. As cidades são como essas aves. Orgânicas, livres, em processo e com uma estrutura palimpséstica.
Entre a imaginada e a real; a vivida e em potência, vislumbra-se a transparente camada que permite seguir a linha: do que foi escrito, combinando, desconstruindo – como o puzzle.
Ainda com a possibilidade de redefinir as peças, com uma tesoura mental que ajusta a imagem da cidade à nossa própria semelhança.
Em Cidades Invisíveis, Italo Calvino mapeia a cidade através do seu “carregado invólucro de símbolos” (2015). Em equilíbrio, o que esconde e o que se releva. A cidade, segundo Calvino, também pode ser redundante repetindo-se para fixar-se na mente, dividida em duas metades e tendo a teia-de-aranha como arquitetura.
Chamamos as cidades pelo nome e as reconhecemos por sua personalidade. Sim, uma personalidade que mais do que a soma das partes de seus habitantes e flutuantes é própria. E mutável.
Encontramos cidades e encontramo-nos nelas. E o encontro subtende o desencontro e a pausa.
Em Livro Usado – Numa Viagem ao Japão, Jacinto Lucas Pires propõe-nos um olhar antípoda sobre um lugar concreto (Japão e suas cidades), mas também imaginário: cruzamento entre o que já foi fixado na memória sobre este espaço “habitado” e o que se pode ainda habitar.
A palavra “usado”, para além de uma aproximação ao conceito de Genette (2010), uma literatura em segunda mão impõe um ritmo que não se cinge ao significado utilitário.
Usado, no sentido de aproximação ao confortável ou das impressões digitais que já fazem parte do objeto ou da cidade. Uma história prévia que percorre o tempo.
E faz a ponte entre os olhares como o fragmento de história que une Quioto a Lisboa. A senhora Kyoto é a linha que liga as duas margens. “Aos quatro anos, em Quioto, viu um bar chamado Lisbon e as letras luminosas a acender e a apagar na noite fascinaram-na e marcaram-na” (Pires, 2004, pp. 155-156).
O letreiro luminoso guardado na memória de Kyoto é um “adorno mural” (Benjamin, 2006, p. 39). Um exemplo significativo, de resto, da ideia de Walter Benjamim de que “a rua transforma-se na casa do flâneur” (Benjamin, 2006, p. 39).
Cidades exigem contemplação e como linguagem pressupõe o andar como um ato de falar, explorando as possibilidades imensas dessa linguagem (Teixeira Lopes, 2017).
Jacinto Lucas Pires observa a cidade como linguagem:
fico horas encostado à grande coluna na entrada da estação de Shinjuku, com o caderno aberto na mão esquerda e a caneta na mão direita, a escrever (frases quebradas, riscadas), tentando o impossível de perceber um povo a partir dos mais pequenos gestos, dos acasos mais precisos, daquilo que é difícil dizer (…). Estou na rua e toda a Tóquio é uma multidão a avançar para mim. (Pires, 2004, pp. 155-156)
Num movimento deambulatório, caminha no meio da multidão e aponta em seu caderno aberto. Como Matuô Bashô observa os fenómenos. Arrisco em transformar um de seus apontamentos num haiku, ainda que imaginário. Ainda que provisório.
Escreveu Pires: “dois corvos aproximam-se (parecem muito grandes, assim perto das pombas), e a mulher cala-se” (Pires, 2004, p. 77).
Corvos aproximam-se
Mulheres calam-se
Cidade escuta e respira
Conheço e não conheço Tóquio. Mas escrevo sobre ela. Sobre esta cidade. Manguel e Guadalupi (2013) percebem a infinitude da “cartografia da imaginação”. “A nossa geografia imaginária é infinitamente mais vasta do que a do mundo material” (Manguel & Guadalupi, 2013, p. 12).
No exercício da minha “cartografia da imaginação”, uso o “livro usado” de Jacinto Lucas Pires e acomodo o meu olhar em Hanami – Cerejeiras em Flor, uma coprodução germano-japonesa de Doris Dörrie.
Trudi (Hanellore Elsner) dedica-se ao Butô, uma dança de origem japonesa que combina teatro e dança, em espetáculos centrados em temas definitivos como o nascimento, a sexualidade, o inconsciente, o grotesco e a morte.
Conheço Tóquio seguindo os passos incertos e tímidos das personagens. Mas não me acomodo com o que vejo. A palavra casulo está presente e guia-me por Tóquio. Quer na libertação da essência pelo Butô, quer no saco-cama azul que serve de poiso para a sem-abrigo jovem e japonesa. Uma Tóquio que é feita de silêncios e de sombra. E desigualdades.
A flor da cerejeira exige uma devoção intensa e absoluta – quer por sua beleza, quer por sua brevidade. Cultuada pelos japoneses, a cerejeira era associada aos samurais cuja vida era tão efêmera quanto a da flor que se desprendia da árvore.
Uma cidade é uma representação provisória. Poderemos imaginá-la de variadas formas e diferentes tons e intensidades de afinidade. Tomando Tóquio como exemplo, a bola vermelha central na bandeira nacional poderá ser interpretada como um símbolo de poder. Assim, como a frase associada: “O país do sol nascente”.
Tóquio, como unidade individual, enquanto cidade, estabelece uma relação de provisoriedade com a unidade total – Japão. Esta dinâmica é particularmente interessante a ser observada. Quais serão as narrativas particulares? Que memórias serão compartilhadas? É nesta oscilação – entre global e local – que a cidade se fixa. E o olhar de quem a observa é fixado.
Provisória e efêmera também é a sonoridade das cidades. Os sons que se confundem com ruídos. Mas serão não-sons como os não-lugares de Marc Augé?
Fortuna (1998) afirma que “as imagens das cidades são também feitas de sonoridade”. Uma “geografia dos sons” (Fortuna, 1998, p. 22) que privilegia a subjetividade e os outros sentidos. Estar disponível para escutar a cidade, o som ao redor e nas entranhas, no sentido de “auscultação”, com um estetoscópio imaginário junto aos seus órgãos, é um convite irrecusável.
Em Tóquio, o som da multidão apressada, polimórfico, convive com o silêncio da delicadeza da cerimônia do chá, dos metros, e do fio de prata da espada do Samurai.
A cidade é um imã (Rolnik, 1988/2017). O seu poder de atração-repulsa; encantamento-desilusão integra a dinâmica primeira: a vida-morte-vida. Nesta cidade imaginária, a minha Tóquio imaginária, que como as cidades de Calvino têm nomes fictícios, continuo a seguir a pista do Haiku. Escuto o som da cidade. É o gutural do Butô. Mas também das aves que me ausentam do mundo.
Viviane Ferreira de Almeida
Referências
Benjamin, W. (2006). A modernidade. Lisboa: Assírio & Alvim.
Calvino, I. (2015). As cidades invisíveis. Lisboa: Leya.
Fortuna, C. (1998). Imagens da cidade: sonoridades e ambientes sociais urbanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, 51, 21-41.
Frade, G. (2014). Dez poemas de Matsuo Bashô. Em Tese, 20(2), 140-149. DOI: 10.17851/1982-0739.20.2.140-149
Genette, G. (2010). Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: Edições Viva Voz.
Lopes, J. T. (2001). Identidades, estilos, repertórios culturais. Um certo ponto de vista sobre a cidade. In M. Pinheiro, L. V. Baptista & M. J. Vaz (Eds.), Cidade e metrópole. Centralidades e marginalidades (pp. 181-194). Oeiras: Celta Editora.
Manguel, A. & Guadalupi, G. (2013). Prefácio à edição portuguesa. In A. Manguel & G. Guadalupi (Eds.), Dicionário de lugares imaginários (pp. 11-31). Lisboa: Tinta da China Edições.
Pires, J. L. (2004). Livro usado: numa viagem ao Japão. Braga: Círculo de Leitores.
Rolnik, R. (1988/2017). O que é cidade. Brasília: Brasiliense.
Referências sugeridas
- Uma obra cinematográfica/filme/documentário: Dörrie, D. (Realizador). (2012). Hanami – Cerejeiras em Flor [Filme]. Alemanha: Bavaria Media International.