O que dizer e o que fazer com os bancos públicos? Uma breve leitura guiada…

Em 1992, em Los Ángeles, teve lugar uma “revolta” que acabou por desencadear nos desenhadores do espaço urbano a “fortaleza downtown”. Vázquez descreve que

enquanto as janelas eram quebradas na área de todo o velho distrito financeito, Bunker Hill fazia justiça ao seu nome…os corpos de segurança das grandes torres bancárias puderam impedir qualquer acesso aos seus caros imóveis. Portas de acesso à prova de bala deslizaram sobre as entradas situadas ao nível da rua, as escadas automáticas/rolantes pararam instantaneamente e as fechaduras eletrónicas bloquearam as passagens pedonais. (2004, pp. 110-111)

Entendendo-se na época que as forças da ordem não eram suficientes para garantir a segurança na cidade, arquitetos, urbanistas e polícias acabaram por ceder à “ecologia do medo” (Davis, 1998) e procuraram tecer estratégias concertadas de prevenção contra ocupantes indesejados. De entre as diversas iniciativas, destacamos o desenho de bancos de autocarro semi-cilíndricos, sobre os quais ninguém conseguia dormir.

Outro exemplo vem-nos do Porto, quando em abril de 2023 a autarquia mandou retirar os dois bancos públicos existentes no Largo Alberto Pimentel, no centro da Cidade. Tal medida despoletou, então, um debate sobre a importância dos bancos públicos, enquanto estruturas fundamentais ao exercício do direito à cidade (Lefebvre, 1968/2012), no contraponto da tendência para a privatização e mercantilização dos espaços, decorrente, nomeadamente, da crescente turistificação (Correia Pinto, 2023). O projeto Cidades para sentar, projeto de investigação lançado no Laboratório de Planeamento e Políticas Públicas – L3P da Universidade de Aveiro, por seu turno, é ilustrativo do incremento da discussão e da pertinência do desenvolvimento de pesquisa sobre a temática.

Partindo dos exemplos enunciados, podemos interrogar: o que dizer e o que fazer com os bancos públicos?

No imediato, a articulação do dizer com o fazer, num mesmo enunciado, permite-nos pensar na performatividade da linguagem, à maneira de Austin (1962), isto é, na linguagem em ação. Se dizer é, em si, um ato, desde que reunidas as condições que permitam o sucesso do mesmo, importa sobretudo considerar os efeitos da linguagem, em última instância os efeitos perlocucionários, como avançado pelo autor. Nesta medida, o design urbano, tomado enquanto prática de enunciação situada, não está inocentado de vocação política. Não cumpre apenas uma função, no seu sentido mais literal, através de uma dada forma e matéria. Um banco público, para retomarmos o exemplo que aqui nos interessa discutir, não é apenas um objeto que visa, de diferentes feitios, servir de assento. É, além do mais, um recurso, material e semiótico, desenhado e usado com uma dada finalidade, inibindo, ou incentivando determinadas práticas de apropriação por parte dos passantes. Plantado no espaço público, predispõe a uma leitura previsível, assente no histórico dos muitos bancos já vistos, já conhecidos ou experimentados. Convoca ainda a consideração de determinados códigos sociais que determinam as regras da proxémia, os limites de distanciação desejável entre os corpos, sobretudo de desconhecidos, a postura recomendável, assim como o que fazer quando sentados: contemplar a paisagem, ver quem passa, esperar pelo autocarro, conversar na companhia de conhecidos ou com quem partilha a mesma circunstância, dar pão de comer às pombas, aguardar enquanto os filhos ou netos brincam no parque contíguo, apanhar sol… Ao mesmo tempo, espreita o desejo de algumas práticas mais ou menos subversivas, traduzido no ato de dormitar (sentado ou ao comprido, transformando o banco em cama improvisada), de namorar, de merendar, duplicando o banco na sua função de assento e mesa, ou mesmo de grafitar, tomando-se o banco como uma tela a céu aberto apetecível, uma vez servindo de uma espécie de folha de papel comum sobre a qual qualquer anónimo pode inscrever uma mensagem…

A teoria das affordances, exposta em The ecological approach to visual perception, de James J. Gibson (1979/1986), estará na origem do conceito de significado potencial (potential meaning) que neste ensaio importará ter em conta. Por sua vez, esta teoria articula-se com os princípios da psicologia da gestalt (Koffka, 1935): o significado ou o valor das coisas é percebido imediatamente, na medida em que “as coisas dizem-nos o que fazer com elas” [e o que são] (por exemplo, a fruta diz-nos ‘come-me’, a água diz-nos ‘bebe-me, etc.). Numa só expressão, cada objeto contém ‘a demand character’. Poderemos, assim, questionar: o que nos diz o banco público? ‘Senta-te aqui’, ‘Descansa o corpo e a vista’, ‘Faz uma pausa no teu quotidiano’, ‘Aprecia o tempo a passar’… são algumas das possibilidades de leitura.

Kurt Lewin (1936/1973 acrescentou o termo valências (as características dos objetos que convidam ou pedem um determinado comportamento), referindo-se ao ‘objeto comportamental’ que difere do ‘objeto geográfico’. Neste sentido, o valor de uma coisa muda quando as necessidades do observador mudam. Ao contrário da valência,  porém, a affordance é invariante, não muda quando as necessidades do observador mudam; o observador pode perceber ou atender ou não à affordance, de acordo com as suas necessidades, mas a affordance permanece nas coisas, suscetível de ser percebida. Podemos usar um banco público para fazer uma qualquer acrobacia, mas o seu significado potencial persiste. Convirá ainda acrescentar que, no entanto, perceber uma affordance não é classificar definitivamente um objeto: por exemplo, uma pedra pode ser potenciada como uma arma de arremesso, um pisa-papéis, um martelo, material de construção, matéria-prima de uma escultura… De resto, não é necessário classificar e etiquetar as coisas para perceber a sua affordance. O que nos diz a semiótica social sobre a affordance?

Na semiótica social, os recursos semióticos são signos, ações observáveis e objetos que foram produzidos no domínio da comunicação e que têm um potencial semiótico [affordance] que consiste em todos os usos passados e em todos os seus usos potenciais e o potencial semiótico atual consiste naqueles usos passados ​​que são conhecidos e considerados relevantes pelos usuários com base nas suas necessidades e interesses específicos. Esses usos ocorrem num contexto social, e esse contexto pode ter regras ou boas práticas que regulam o modo como os recursos semióticos específicos podem ser usados, ou deixar os usuários relativamente livres no uso do recurso (Van Leeuwen 2005, p. 4).

O conceito de affordance é, na verdade, baseado no “potencial de significado” (potential meaning) de Halliday: a diferença é que o termo “potencial de significado” concentra-se em significados que já foram introduzidos na sociedade, sejam explicitamente reconhecidos ou não, enquanto “affordances” também contém significados que não foram ainda reconhecidos, que permanecem latentes no objeto, à espera de serem descobertos. Também é importante considerar que as affordances semióticas mudam ao longo do tempo, determinando princípios de regulação, mas também abrindo espaço aos usos inesperados  e à liberdade criativa.

Quais os significados dos bancos públicos já introduzidos e reconhecidos (explicitamente ou não) pela sociedade? Quais os seus significandos latentes, aqueles que se encontram à espera de ser descobertos e que podem mesmo mudar com o tempo?

Com o itinerário que se segue, procuraremos exercitar o olhar sobre as muitas possibilidades do sentido que os bancos públicos potenciam e atualizam. Na certeza, porém, de que diferentes experiências, usos e contextos, conduziriam a leituras outras…

Convidamos assim a(o)s leitora(e)s para o seguinte passeio, estimulado pela chamada Lendo os signos da cidade:

1.

 

 

A perspetiva brinca com as ripas contínuas do banco. Estas permitem a circulação de ar entre o fora e o dentro. Mas há dentro? A natureza diz que sim, que o ar se infiltra, se instala e faz do vazio o seu lugar de ocupação.

(fevereiro, 2023)

Jardim do Centro da Memória de Vila do Conde

de Santo Amaro 372, 4480-754, Vila do Conde

2.

Se pudessem se mover, traríamos a cerca vertical para compor a peça longilínea. Ou o inverso? Tal mobilidade se retém na imaginação— e na composição! Bancos para encosto? Uns sim, outros talvez não…

(abril, 2023)

Parque Desportivo da Rodovia, 4715-318, Braga

3.

Falta o olfato?! Mas os vazios e incertezas encontram outros suportes sensitivos! O mar, bem junto dos Jardins do Lido, talvez sirva de inspiração deste como de outros bancos-telas.

(fevereiro, 2023)

Jardins do Lido, em Funchal

do Gorgulho 11, 9000-107, Funchal

4.

Circular pela Parte alta de Tarragona ­­— Catalunha — é como se embrenhar no Império Romano. E nem sequer imaginamos que nesses passos há empresas e designers dedicados a criar conforto para os passeantes, levando até eles criações que se agregam à essa atmosfera/semiosfera. A marca insere-se no cenário, “benito”, e a peça também é batizada, Alea, dando o tom sobre tom na cidade.

(maio, 2012)

https://www.benito.com/es/mobiliario-urbano/bancos.html

5.

O outono ofereceu um encanto à mais a essas peças que se tornam suportes de mensagens póstumas. Quem seria Kathy? As fixações, que prendem o banco ao solo, o que mais estão a fixar além dessa estrutura de madeira?

(novembro, 2016)

Richmond Park, Londres

6.

Os dois bancos perfilados ganham pares na linha superior e inferior e são ofuscados pela composição vitoriana que lhes é imposta. Suas laterais, que dão apoio aos braços dos passeantes que os usam, ganham um brilho a mais quando compostos com os postes de iluminação, ainda que estejam apagados à luz do dia.

(novembro, 2016)

Richmond Park, Londres

7.

O tom galego foi aqui exposto, cinza no céu, na água e no calçamento. A luminária urbana, objeto tão provocante quanto os bancos, ganhou a vez por impor à cena uma cor quente. O banco se apagou, mas a imaginação pode pintá-lo de vermelho, remetendo às várias peças que levam essa cor nos parques da cidade do Porto.

(outubro, 2019)

Pontevedra

8.

Ao aumentar o ângulo dos 90 graus da postura quando sentamos, se ampliam os horizontes para outros infinitos. O vão livre criado nessa composição e apoiada em três pés remete à lembrança de um audaz arquiteto quando desenhou um imenso vão livre sem pilastras.

(abril 2022)

Parque da Cidade, Guimarães

9.

As intempéries climáticas, como a neve, podem esconder segredos dos materiais originais dos bancos, dando a eles novas camadas, oferecendo estampas que são captadas pelas câmaras e logo após se desmancham.

(janeiro 2010)

Groningen, Países Baixos

10.

Para tudo há outro lado, inclusive nos lugares perfeitos, nas festas e na juventude. O banco parece ser mudo, mas aqui ele tenta expressar (ou esconder?) outra vista a ser conferida, sem ser a frontal.

(agosto, 2023)

Reikjavik, Islândia

 

Helena Pires & Cynthia Luderer

(fotos de Cynthia Luderer)

maio de 2024

 

Referências:

Austin, J. L. (1962). How to do things with words. Oxford University Press.

Correia Pinto, M. (2023, 18 de maio). Dos bancos às soleiras das portas: a importância de nos sentarmos nas cidades. Público.

Davis, M. (1998). Ecology of fear. Los Angeles and the imagination of disaster. Metropolitan Books Henry Holt and Co.

Gibson, J. J. (1979/1986). The ecological approach to visual perception. LEA.

Koffka K. (1935). Principles of gestalt psychology. Harcourt, Brace.

Lefebvre, H. (1968/2012). O direito à cidade. Letra Livre.

Levin. K. (1936/1973). Princípios de psicologia topológica. Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo.

Van Leeuwen, T. (2005). Introducing social semiotics. Routledge.

Vázquez C. G. (2004). Ciudad hojaldre. Visiones urbanas del siglo XXI. Gustavo Gili.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Braga

LATITUDE: 41.5454486

LONGITUDE: -8.426506999999999