O poder das projeções em paisagens urbanas e suas representações no Instagram

“As imagens são marcadas por todos os estigmas próprios à animação e à personalidade: exibem corpos físicos e virtuais; falam conosco, às vezes literalmente, às vezes figurativamente; ou silenciosamente nos devolvem o olhar através de um abismo não conectado pela linguagem”. Mitchell (2015, p. 167)

As redes sociais são novos territórios em que as pessoas podem postar fotografias que retratem os seus cotidianos, jornais podem divulgar notícias e projetos com diversos fins podem divulgar suas iniciativas, criando uma rede colaborativa de visibilidade e interação. A pandemia da Covid-19 gerou aborrecimentos e propiciou ansiedade para muitas pessoas, que ainda não compreenderam como voltaremos para a “normalidade”.

De nossas casas, vemos tudo acontecer através de televisores, computadores e telemóveis. O perigo iminente do Coronavírus fez com que muitas sociedades vivessem em isolamento social por tempo indeterminado. No Instagram, entre um emaranhado de fotografias, vejo iniciativas que tranquilizam corações e informam a população. “A esperança equilibrista” ganhou as paredes de Copacabana e do Botafogo, no Rio de Janeiro (Brasil), e chegou em diversas localidades através do #Projetemos no dia 05 de maio. E, antes da esperança ganhar estas partes, o Rio de Janeiro viu um pedido de casamento: “Isabella, vamos ficar de quarentena juntinhas para sempre. Casa comigo?”. Nas lembranças especiais do dia 29 de abril, vemos mais uma declaração de amor: “tenho um coração à parte só para te amar”.

Passando os dedos pelo telemóvel, vemos as contínuas postagens do #Projetemos. Em Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil), uma homenagem aos falecidos que não conseguiram vencer a luta contra a Covid-19: “Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa”. Jornais brasileiros noticiam o poder das projeções. Uma técnica de arte urbana que está tomando as fachadas dos edifícios mais altos das grandes cidades brasileiras à noite. Mesmo com o distanciamento social, as pessoas não deixam de se manifestar, principalmente no que discerne ao âmbito político dos países. Uma forma de resistência ao governo de Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil que está se destacando no cenário mundial por sua omissão em relação ao combate do Coronavírus, (re)nasce neste contexto socioeconômico e cultural. A defesa do SUS, Sistema Único de Saúde brasileiro, é uma das temáticas projetadas.

New York também pode ser vista durante o isolamento social, fazendo das projeções uma forma de manifesto em defesa da saúde. “For you! For them! For us! Stay inside. Victory begins at home”. Com um número alto de casos de Covid-19 e de óbitos nos Estados Unidos, o apelo ganhou as paredes da cidade e pode ser visto pelo Instagram no @the.illuminator. Pelas paredes de NYC, vemos também apelos à proteção de algumas minorias: “Protect migrant & refugee detainees from Covid-19”. Observando as postagens do @the.illuminator percebo o caráter político implícito destas manifestações. Em 04 de junho de 2019: Cancel Trump no Parlamento do Reino Unido. As imagens destas projeções viajam o mundo, sem limitações de tempo e de espaço. É o poder da tecnologia e da imagem, em constante interseção, dando voz às sociedades contemporâneas através dos projetores.

A força da imagem é um convite para confrontá-las, expô-las e aclamá-las. Mitchell (2015, p. 170) faz uma crítica à forma como a cultura visual pode ser tendenciosa. Como crític@s, corremos o risco de interpretar as imagens sempre como uma estratégia direta de intervenção política. No que discerne ao “poder das imagens”, é preciso compreender que elas também podem ter um valor mais singelo do que supomos. Pensando nesta reflexão de Mitchell (2015), busquei compreender o que estas projeções realmente querem.

No dia 06 de maio, conheci Mozart. Mozart é um VJ (vídeo jockey) que vive em Recife, Pernambuco (Brasil). Seu trabalho está relacionado ao turismo livre. Com projeções, o artista faz interferências nos cenários turísticos da cidade. Em nossa videoconferência que aconteceu na plataforma digital Zoom, Mozart me contou como surgiu a ideia do #Projetemos. Com seus trabalhos limitados durante a pandemia da Covid-19 no nordeste brasileiro, Mozart buscou formas de informar a população e se manifestar artisticamente. “Não posso sair de casa, mas a minha luz e a minha informação podem sair da janela, alcançando outras pessoas”, disse Mozart.

A proposta do #Projetemos se baseou em uma criação de redes colaborativas entre VJs e voluntári@s que queriam levar mais informação para as pessoas ao redor do mundo. Hoje, a inciativa conta com mais de 200 projecionistas espalhados em diversas localidades. Brasil, Estados Unidos, Itália e Portugal estão conectados diariamente nesta rede, discutindo pautas e compartilhando informações para que os trabalhos de projeção aconteçam. Mozart me contou que as projeções são um ato político e um fenómeno artístico. Falamos sobre o poder do alcance e sobre a estética do projeto. A ideia é sublime, como reforçou o artista entre sorrisos e preocupações com o avanço da Covid-19 no Brasil. Trata-se de alterar a paisagem dos horizontes. Mesmo que os artistas não consigam ver o alcance real de suas projeções durante a execução, os registos fotográficos de outras pessoas mostram a imensidão das transformações que acontecem nas paisagens dos grandes centros urbanos.

Jornalistas, movimentos sociais e pessoas que nunca projetaram começaram a demonstrar muito interesse pelo projeto no último mês, e isto está intensificando a ação que surgiu pela necessidade de divulgar “informação contra a pandemia”. As projeções que retratavam “Os inumeráveis” ganharam visibilidade internacional. A ação que busca humanizar o extenso número de mortes no Brasil, ressalta que todas as vidas importam: “A melhor amiga de infância de qualquer um em cinco minutos. Érika Regina, 39 anos, vítima do coronavírus em São Paulo, não é um número”.

Mesmo com as críticas de alguns vizinhos que foram até a casa de Mozart perguntar sobre as projeções que julgavam desnecessárias, ele continua seu trabalho. Com mensagens que reforçam a necessidade de permanecermos em casa, ele conseguiu transformar até mesmo a região em que vive. Algumas crianças que antes estavam acostumadas a brincar nas ruas, já estão em casa. A intenção de projetar discursos bons e honestos prossegue.

Concluo que a rede de projecionistas livres e os retratos postados no Instagram, querem se posicionar politicamente através da arte e dos inúmeros aspetos que a cultura visual dispõe para isto. As fotos que retratam estas projeções desejam ser vistas e, acima de tudo, querem ser escutadas. Esta seria uma tarefa impossível para imagens tão silenciosas e imóveis? Acredito que não, pois a linguagem colabora neste aspeto e as letras ganham protagonismo (Mitchell, 2015, p. 184).

Foucault (2017) aborda o poder como uma prática social construída ao longo da história da humanidade, deslocando-o da concepção de que está concentrado apenas nas mãos do Estado, como força controladora. Segundo o autor, é preciso observar um outro aspeto do poder. Ele pode sim ser usado como forma de repressão, exclusão e censura. Porém, cada luta que travamos no nosso cotidiano se desenvolve em torno de um foco particular de poder, principalmente as lutas de resistência. O poder é capaz de permear as sociedades e produzir discursos. É capaz também de ser expressão, induzindo ao prazer e às formas do saber. As lutas de resistência como formas de micropolítica são compostas por “gestos, atitudes, hábitos e discursos”. Considero o poder, neste contexto, um produtor de novos saberes e de novas maneiras de viver. E isto norteia, em especial, as expressões artísticas que são atos políticos que acontecem nos centros urbanos, principalmente em subúrbios, como é o caso do #Projetemos, que pede “mais amor” neste período tão crítico para o mundo.

 

Referências

Foucault, M. (2017). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Mitchell, W. J. T. (2015). O que as imagens realmente querem. Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica.

 

Por Alessandra Nardini

Braga, 07 de abril de 2020