O Escondidinho (Estigma #02)

Ela olhou à volta, à procura de uma placa, mas não via nenhuma. Continuou mais um pouco. À esquerda, depois de uns ecopontos, nascia uma rua, a Rua do Forno. Estava no caminho certo. Pela memória, seria percorrer a rua, virar na 2ª à direita e depois de um pedaço, uma oficina e então à esquerda.

Assim o fez, mas chegou a uma zona já longe de tudo, apenas de casas devolutas, carros abandonados, e ruas cada vez mais estreitas. Sem saber que fazer, hesitando se haveria de voltar para trás, ou se antes passar a vergonha de pegar no telefone e assumir o desnorte, viu uma placa “Travessa do Repouso”. Entre um candeeiro de iluminação e dois postes, uma pequena tabuleta gasta pelo sol a apontar para a esquerda: “Restaurante O Escondidinho”.

– Caramba, já não me lembrava. Isto não é escondido, isto é mesmo nos confins… – pensou. Ao mesmo tempo, ficou aliviada por não ter que dar parte fraca, confessar que se tinha perdido, seria um ultraje ao passado, às memórias.

Combinara almoçar com um amigo de infância. Já lá iam mais de 30 anos, desde que deixou aquela cidade. Trocou-a por outra, sem pudor, nem arrependimentos. Assim foi. E agora, de visita, combinaram almoçar naquele restaurante, onde outrora se despediram, num jantar com outros amigos, que também eles entretanto partiram. Uns para outras terras, outros para debaixo dela.

Entrou. Sala cheia. Tudo diferente do que se lembrava. Antigamente era um lugar simples e acolhedor, sobretudo pela genuinidade. Agora estava transformado num espaço moderno. Já não tinha nas paredes fotografias dos pais dos donos, da miudagem no terreiro do campo da bola, da antiga igreja que entretanto foi abaixo e onde agora é o supermercado, nem a mais famosa fotografia com o próprio dono montado em cima de um porco em estúpido ar de sofrimento.

As paredes agora tinham uma enorme placa de ardósia com o menu escrito a giz, numa letra recambolesca, demasiado ornamentada, mais um quadro a imitar Miró e uma fotografia da Torre Eiffel e outra do Big Ben.

Observa o menu. Também os preços ganharam a dimensão europeia das paredes.

Onde vive, também há um Escondidinho. Mas esse, ainda vai sobrevivendo aos tempos modernos. Ainda se mantém genuíno. Ainda tem identidade. Ainda tem dignidade.

O amigo dela chega. Pelo menos ele, ainda mantém essa identidade. Reconhece-o como sempre foi. Será que ele vai achar o mesmo de si? Será que ela, na grande cidade, perdeu sem dar conta, a sua dignidade?

Autor: Carlos Norton

Ficha técnica

Som gravado com binaurais Roland CS-10 EM

E#02

O Escondidinho (Carvoeiro, concelho de Lagoa) (09.02.23 ; 13:15)

37,105592; -8,478619

Gravação sentado na zona de espera / balcão de bar.

Publicado a 09/03/2023

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Ficheiros audio

Escondidinho

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Faro

LATITUDE: 37.00925334066398

LONGITUDE: -7.989614486694327