O ato de existir (e resistir) através das imagens
Imagem(ns). Como refere Martins: “a imagem constitui a própria forma da nossa cultura (…). Somos hoje atravessados, de facto, por uma imensidade de imagens, que nas ruas e nos centros comerciais nos vêm das montras e dos placares, imagens que nos invadem a casa” (2011, p. 77).
Imagem-entretenimento, imagem-fruição, imagem-representação… são vários os desdobramentos das imagens. Imagem-fotografia, imagem-graffiti, imagem arte urbana, imagem-ativista.
Ao caminhar pelas cidades, cada vez mais, deparamo-nos com um facto: a presença de manifestações visuais estampadas, pintadas, cravadas em todos os lugares.
Imagem 01 – Graffiti em Braga, um exemplo de arte urbana
Arquivo Passeio. Outubro de 2020
A cidade-vivida, ou melhor… a cidade como lugar de habitar (Pires, 2018) e as suas ruas são locais de significação onde a sociedade urbana se forma enquanto se procura. Entre signos e símbolos, os sujeitos históricos manifestam sua imensidão e inscrevem, com suas diferentes vozes, apelos e experiências no espaço/tempo.
Local de manutenção discursiva e ideológica, de fulcral importância política no pensamento e na prática (Lefebvre, 2008), o espaço citadino é palco para expressões individuais/coletivas das (in)visibilidades quotidianas. E quais serão as formas escolhidas para reivindicar uma fatia do espaço para si? Poderá a rua ser o espaço escolhido pelos sujeitos como palco de manifestação? Com relação à segunda pergunta, a História mostra que sim.
E a primeira questão? Como responder?
Há autores, como Roger Fry em Um ensaio de estética (2009), que defendem a arte como o órgão principal de uma vida imaginativa, meio pelo qual o ser humano é capaz de transgredir o condicionamento da visão “real”, do objectivo, daquilo que é necessário para a sobrevivência. Dessa maneira, ao colocar questionamentos e estética em conversa, os discursos “reais” conseguem ser renovados e há, então, a possibilidade de novos cenários de visibilidade, reivindicação “imaginativa” e inserção na esfera pública.
Imagem 02 – Providência
Uma das imagens do circuito. Obra de Alexandre Farto – Vhils
A arte de rua, ao manifestar-se através de diversas intervenções, performances, graffiti, teatro, de entre outras, tem, nas artes visuais, um grande destaque. Numa civilização centrada na visualidade, as imagens assumem um “elevado protagonismo enquanto bens culturais de circulação planetária” (Campos, 2012, p. 553).
Esse cruzamento entre arte urbana e visualidade resulta em expressões de apropriação do espaço urbano, seja através de tags ilegais, em que os writers buscam inscrever sua marca na cidade na tentativa de serem vistos (imagem 03), de murais semi-legais (Hall of Fame) (imagem 04) ou de obras legais (imagem 05).
Imagem 03 – Tag em Chicago, Estados Unidos
Imagem 04 – Mural (Hall of Fame) em Atenas, Grécia
Imagem 05 – Etnias do artista Kobra
Arquivo pessoal da autora. Junho de 2017
Nesse sentido, compreende-se a arte urbana (através do graffiti) como uma das facetas da vida contemporânea. Ao fugir do padrão estético tradicional e de espaços fechados, a street art, ao utilizar uma linguagem visual popular e a cidade como medium, comunica e dialoga com a população.
Vale ressaltar, entretanto, que nem toda a arte urbana é intrínseca e necessariamente subversiva. Muitas das vezes pode mesmo reforçar a normatividade – assunto este que merece atenção da parte académica. Todavia, existe manifestação artística urbana engajada politicamente (imagem 06), como exercício de cidadania, de desafio das narrativas dominantes/hegemônicas. Essas obras podem ser, inclusive, consideradas artivismo, um neologismo introduzido na década de 1960 e reintroduzido nos anos 1990, que procura dar conta das artes ativistas.
Nem toda a obra ativista será arte urbana, assim como o contrário também não acontece. O interessante é que toda arte urbana ativista, por sua vez, situa-se no “interior de uma relação social em que é fundamental o reconhecimento do “Outro” e também promove a crítica das condições que produzem a contemporaneidade” (Vilar, 2019, p. 2).
Imagem 06 – Women are Heroes
Uma das imagens do circuito. Artista JR
A arte urbana ativista, como veículo desse processo de reivindicação do olhar, inspira as pessoas a pensar em novas alternativas para antigos problemas. Esse ativismo visual, como refere Mirzoeff (2015), seria, então, o resultado de uma interação entre imagens e ações para fazer mudanças. As (pequenas) mudanças podem residir no quotidiano. Ver uma nova imagem é uma mudança da paisagem. Mas pode provocar também uma (grande) mudança de pensamento. O que nunca pensamos e só nos ocorre quando vemos uma imagem? Deixamos aqui essa proposta de reflexão.
Ao entrar na disputa por significação no espaço, a arte urbana ativista contribui para diferentes possibilidades de ver e ser visto, de olhar para o Outro, para o mundo, para o que é visto, mas não percebido. Significa um ato de existir (e resistir) através das imagens.
Encerramos com as palavras de Mirzoeff (2015, p. 290): “Revoluções são sobre visão. Uma revolução de visão, de propósito, talvez de esperança”.
Referências:
Campos, R. (2012). A pixelização dos muros: graffiti urbano, tecnologias digitais e cultura visual contemporânea. Revista FAMECOS, 19(2), pp. 543-566.
Fry, R. (2009). Um ensaio de estética. In V. Moura (coord.), Arte em Teoria – Uma antologia de estética. Ribeirão: Edições Húmus, 59-74.
Lefebvre, H. (2008). O direito à cidade. São Paulo: Centauro.
Martins, M. L. (2011). Crise no castelo da cultura. Das estrelas para os ecrãs. Coimbra: Grácio Editor.
Mirzoeff, N. (2015). How to see the world. London: Penguin Books.
Pires, H. (2018). A arte urbana e os lugares do habitar. Up There, o caso da intervenção de Katre no Bairro de Carcavelos. In H. Pires & F. Mesquita (Eds.), Publi-cidade e comunicação visual urbana (pp. 29-60). Braga: CECS.
Vilar, F. (2019). Enlaces: artes periféricas, artivismo e pós-memória. Memoirs – CES, 38(1), pp. 1-5.
por Thatiana Veronez
Braga, novembro de 2020