Nkisi Soccer Dual Game e a conquista do império

Por estes dias, a obra que nos saúda no átrio do Museu Nacional de Etnologia em Lisboa, logo no R/C, é uma escultura em mármore branco, de 2023, do pintor, escultor, ensaísta e investigador moçambicano Lívio de Morais (1945-). Intitulada Grito de Liberdade. Não vamos esquecer o Tempo que passou (título com inspiração numa das mais famosas canções revolucionárias de Moçambique), esta obra dá o mote para a exposição que vamos encontrar no 1º piso (Fig.1). Criado em 1965, o então Museu de Etnologia do Ultramar, e hoje Museu Nacional de Etnologia, resultou em muito da atividade do antropólogo Jorge Dias e da sua equipa de colaboradores, mais concretamente de uma campanha a Moçambique, desenvolvida no seio da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar (1958-1961).

Saltando a exposição permanente O Museu, muitas coisas, subi rapidamente as escadas em direção à exposição temporária Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo em África: Mitos e Realidades. Organizada pelo Centro de Estudos Sobre África e Desenvolvimento (CESA/ISEG-Universidade de Lisboa) e pelo Museu Nacional de Etnologia, a exposição é comissariada pela historiadora Isabel Castro Henriques, e realiza-se no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

O centro da exposição (e do Museu Nacional de Etnologia) é a escultura Nkisi Soccer Dual Game (2019), do artista congolês Hilaire Blue Huyangiko. Esta obra de arte combina elementos da cultura ancestral congolesa (Nkisi enquanto sagrado ou divino) com referenciais da cultura popular contemporânea afro-global. Reapropria-se de símbolos, concerta hibridez, desestabiliza identidade. Com uma bola de futebol revestida de teclas de computador por cabeça, com um corpo de madeira cheio de pregos (em que geralmente cada um significa um conflito, uma disputa, um divórcio, etc.), e um apito de árbitro azul com inscrição das Nações Unidas, a escultura tem a seu lado, na base, a cabeça que já não é (Fig.2). Há um texto explicativo da peça e, depois da escultura de Lívio de Morais, é feliz esta escolha para o centro do mundo.

Partindo deste núcleo, a exposição desenvolve-se em sete eixos (ou seis mitos e uma promessa), que compõem os vários percursos dos mitos fundadores do império. Estes percursos, todos irradiando da obra de Huyangiko, constroem-se com peças do acervo do Museu Nacional de Etnologia e com materiais gráficos, que pretendem contribuir para a desconstrução de imaginários do colonialismo português: “I – Estamos em África há 500 anos”; “II – Missão Civilizadora e Progresso”; “III – Vocação Colonial e Missão Histórica”; “IV – Os Outros (Selvagens) e Nós (Civilizados)”; “V – A África Portuguesa”; “VI – A Grandeza da Nação e a Luta Armada”; e “VII – Descolonização, Independências e Legados do Colonialismo”. A abordagem destes temas neste museu em concreto é importante, mas a navegação através destes eixos, a navegação física, é difícil, por vezes confusa. Por um lado, o espaço revela-se claramente exíguo para a quantidade dos materiais expostos e para a dimensão dos materiais gráficos. Por outro lado, questiono-me se os visitantes (e a diversidade aqui é muito grande), por muito interessados que estejam nestes assuntos, leem esta quantidade de texto, atentam aos filmes projetados nas paredes, e se detêm no acervo exposto em vitrines. Ainda assim, sem grandes novidades para os mais informados, há critério nos materiais gráficos escolhidos, equilíbrio e qualidade nas análises textuais, e é com prazer que se percorre a tentativa de desestabilização dos mitos fundadores da nação.

Mas nestes percursos, encontro dois problemas maiores. Por um lado, a articulação destes percursos de descolonização com as peças museológicas fica por fazer, e muitas destas, sem contextualização suficiente, continuam a ser objetos exóticos, belos, de consumo. Se Nkisi Soccer Dual Game é explicada, bem como, num dos extremos da exposição, a caneta com que Ernesto Melo Antunes assinou o acordo do Alvor, no Algarve, em 1975, entre o governo português e o MPLA, o FNLA e a UNITA, as outras peças acompanham/embelezam silenciosamente os vários percursos. Regresso brevemente a uma análise da exposição permanente O Museu, muitas coisas, e vejo traços comuns. A exposição permanente é estática, não estimulando qualquer tipo de pensamento crítico ou diálogos com passados ou futuros, estando os objetos ancorados na sua própria estética (Sarmento & Moisés, 2020). Continuam lá, fixos, silenciosos, e sem agência, e é preciso acordá-los.

Por outro lado, o último tema – “VII – Descolonização, Independências e Legados do Colonialismo” – merecia um tratamento mais alargado. É aqui, julgo eu, que está o cerne da questão e na qual deveria estar o fulcro da exposição, tal como as esculturas Grito de Liberdade e Nkisi Soccer Dual Game tinham prometido. Tendo por subtemas o processo de descolonização, os movimentos de libertação nacional, as novas independências e os “retornados”, discute-se pouco a prevalência da negação do racismo em Portugal. Este final da exposição toca em vários temas contemporâneos chave, como os bairros periféricos das áreas metropolitanas, a discriminação social e racial, a ausência de espaços públicos de memória que combatam os silêncios do pós-colonialismo português. Mencionam-se e mostram-se brevemente vários projetos interessantes, dos quais destaco aqui apenas alguns, por falta de espaço. O primeiro é a instalação fotográfica que o artista Angolano Kiluanji Kia Henda fez em 2006, criando um movimento de africanos no Padrão dos Descobrimentos dissonante dos heróis de pedra que lá estão, sugerindo a chegada à metrópole, e não a partida, de um conjunto diverso de arquivos, memórias e experiências. O segundo, do mesmo autor, é uma imagem do projeto Plantação: Pesadelo e Prosperidade. Este memorial de homenagem às pessoas escravizadas, constituído por centenas de canas-de-açúcar em alumínio, resulta de uma proposta vencedora feita pela Djass, Associação de Afrodescendentes, no âmbito do Orçamento Participativo de Lisboa em 2017. Sintomaticamente, passados cerca de sete anos, ainda hoje se discute pelos corredores da burocracia o lugar do memorial bem como os pareceres necessários para a sua instalação.

A exposição inclui ainda parte de dois trabalhos fotográficos da artista visual luso angolana Mónica de Miranda (An ocean between us, 2013 e Hotel Globo, 2016), complementados com uma escultura de madeira da mesma autora (Casa Portuguesa, 2020). É um remate com pouco enquadramento e algo apressado neste final de exposição. O trabalho fotográfico Hotel Globo, por exemplo, foca-se num edifício de Luanda, remetendo-nos para a arquitetura modernista no ultramar, para as memórias coloniais e o seu entrecruzar com o presente. Explora a apropriação do edifício e recria ficcionalmente fragmentos das vivências contemporâneas dos novos hóspedes, na sua resistência à especulação imobiliária e financeira em Luanda. Já o trabalho An ocean between us, que é também um filme, é uma exploração emocional de uma entidade que separa Portugal das suas antigas colónias, um espaço liminar que esconde séculos de terror e de que engoliu tantas vidas africanas para o anonimato. As maquetes de Casa Portuguesa surgem quase como decorativas, e não se percebe que foram executadas posteriormente a um trabalho de documentação fotográfica e de uma peça de vídeo (2016, 4’3’’), que pretendeu questionar o direito à habitação, o direito a construir e viver numa casa.

As coleções dos museus e as exposições, são um ponto de partida importante para a discussão sobre novas formas de produção de conhecimento global (Muller & Langill, 2021), e sobre o processo de reconhecer os desequilíbrios históricos de poder que continuam a ter impacto hoje em dia. Mas era preciso mais espaço, interpretação, apontadores, para que um público mais vasto, menos especializado, pudesse interagir com estes materiais, que seguramente comporiam um oitavo eixo, podendo assim cumprir o objetivo de Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário.

 

 

 

 

Texto e imagens: João Sarmento (CECS/Universidade do Minho), dezembro de 2024

Publicado a 16 de janeiro de 2025

 

Referências

Muller, L., & Langill, C. S. (Eds.). (2021). Curating lively objects: exhibitions beyond disciplines. Londres: Routledge.

Sarmento, J., & Martins, M. de L. (2020). À procura de Moçambique no Museu Nacional de Etnologia, Portugal. Revista Lusófona de Estudos Culturais, 7(2), 15-32. https://doi.org/10.21814/rlec.3132.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Lisboa

LATITUDE: 38.7049937

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