Na impossibilidade, existir
Há um campo comum entre o invisível e o impossível. Um lugar em que as duas noções se sobrepõem, como num diagrama de Venn. Mas essa sobreposição pode ser também o espaço que as distingue e separa.
Se a primeira diz respeito ao que não se vê ou não pode ser visto, a segunda é o que não pode ser ou acontecer.
O impossível pode ser traduzido em texto, som ou imagem, formatos mais fáceis de observar. Mas o mesmo acontece com o invisível, cujos contornos podem ser delineados para o transmitir a outros. Tanto no processo de conceção da ideia ou coisa que não se vê ou que não é, como no da sua transposição para um formato que permita disseminar essa informação, há uma faculdade indispensável: a imaginação.
O projeto As Cidades Impossíveis toma como ponto de partida as descrições que Marco Polo relata a Kublai Kan, nas palavras escritas por Italo Calvino em As Cidades Invisíveis (1972/1993). A veracidade do texto de Calvino lê-se nas entrelinhas. Não se trata de uma realidade transformada em ficção, mas sim de uma ficção que, se a entendermos como metáfora, podemos transpor para o real. Se lhes mudarmos o nome, muitas destas descrições assentariam perfeitamente em cidades e lugares que conhecemos, referindo-se quer a aspetos urbanísticos, populações, acontecimentos quer a momentos mais ou menos específicos ou mais ou menos gerais.
A procura de um Porto ficcionado não aconteceu tendo o livro como guia, mas sim tendo o formato e a forma de escrita na mente como conceção estética a alcançar.
Busquei a cidade-ficção vagueando no espaço da cidade-real. Percorri a cidade observando equipamentos urbanos fixos, parava e seguia com o olhar as pessoas em movimento. Em simultâneo, ocorria em mim uma deriva interna, viagem pelos pensamentos que surgem tanto da experiência física do percurso, como da observação, quer voltada para o que me é externo, quer voltada para dentro.
Procurar na cidade o que ainda não tinha visto, parecia-me insuficiente do ponto de vista criativo e, portanto, ilusório. Procurar essa autenticidade última do que ainda não existe, parecia-me uma tarefa megalómana e, portanto, irrealizável.
Achei que o truque para encontrar essa necessária originalidade seria olhar o que existe. Admirar o banal ao ponto de o ver como singular. Como quando repetimos uma palavra tantas vezes que a mesma perde o sentido e a sua sonoridade se torna estranha. E é apenas nesse momento que posso tentar transformar o visível ordinário no absurdo, esse particular lugar do impossível que reside no real. É precisamente nesse lugar que está a invisibilidade em potência. A invisibilidade é impossível apenas porque ainda não existe.
O que se procura que ainda não é, tem todas as formas possíveis, exceto a que existe de facto. A potência passa a possível quando concretiza uma forma.
Ação semelhante descreve Álvaro Siza no livro Imaginar a evidência (2013). Ensina-nos que criar algo novo depende da observação atenta do contexto para onde criamos. Talvez por defeito de formação tenho a necessidade de pensar o objeto em conjunto com o espaço. O site-specific é condição essencial na forma de projetar a Arquitetura que aprendi e disso dificilmente me consigo libertar no trabalho artístico.
Primeiro passo, aprender a olhar o que existe. Aprender a ler a História e a prever algum pedaço do futuro. Porque “o projeto está no sítio”, já antes de o desenharmos, à espera que o descubramos. Não sejamos redutores, haverão muitos projetos possíveis no mesmo lugar e muitos deles lhe assentarão perfeitamente. A mensagem não é a de que temos de descobrir a agulha no palheiro, porque ela de facto não está lá ainda. A mensagem é a de que temos de olhar o palheiro, sentir o feno com as mãos e dele sacar pelo menos uma haste de palha seca que possa funcionar como uma agulha.
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Sem ter grande consciência disso ao longo do processo, percebi posteriormente que comecei neste projeto a tatear a arte socialmente comprometida (ASC). Traduzo livremente a expressão para português, a partir do termo Socially Engaged Art, preferido de Pablo Helguera (2011) de entre os muitos que proliferam na atualidade para designar este tipo de prática artística.
A dimensão social foi sempre objeto do meu interesse pessoal e por essa razão, inevitavelmente presente no trabalho que produzi, embora até então de forma bastante mais dissimulada ou discreta. ‘As Cidades Impossíveis’ incluíram um grupo de participantes diversificado, jovens ligados às artes, mas não só, que pela participação se tornaram performers nas ações propostas, sendo que apenas um deles é uma intérprete profissional.
No entanto coloco este projeto como ASC não pela dimensão participativa, mas sim pelo discurso produzido, focado em questões do desenho e funcionamento urbano – com particular incidência sobre a questão ecológica – mas também em questões de cidadania mais gerais, como formas de pertença e inclusão social (ou falta delas), no modelo político e económico de construir cidade e nas formas possíveis de participação pública dessa construção. Isto materializou-se em um documento audiovisual que regista a cidade e algumas das suas transformações ao longo de vários meses de 2021, em conjugação com as ações performativas nos lugares em causa e uma narração que digere e reescreve apenas parcialmente o texto de Calvino, pois o mesmo assenta sobre a imagem de forma quase natural. Concebo o projeto como uma forma de cidadania ativa, que através da produção artística é capaz de questionar partes específicas do modelo social que existe no espaço e tempo em causa.
Da mesma forma, as ações no espaço público e semipúblico propõem-se como uma forma de “ataque sensível” aos lugares e outros utilizadores, sem chegar ao ponto de vandalismo, mas como atos de insubordinação dócil, suficientemente subversivos para causarem espanto e indagação em quem com eles se depara. Acerca da problemática que um projeto deste tipo levanta em torno do público fico ainda com algumas questões às quais não sei responder. Entre elas: o público percebe? É essencial o público perceber?
A cidade ficcionada que criei compreende três pontos notáveis da cidade do Porto: o Jardim do Campo 24 de Agosto e o recente supermercado da cadeia Continente, o terreno baldio por trás da estação de metro da Lapa, onde a Rua Rui Vilela é de facto um caminho em terra batida que atravessa um campo de futebol inutilizado, e por fim, o muro – recentemente demolido – que ao longo da Avenida de França encerrava os terrenos dedicados ao futuro El Corte Inglês, onde um grupo de cidadãos reclama um jardim público.
Em cada um deles efetuei registos de som e imagem e teve lugar uma ação performativa única e site-specific. Pavonear, Circular e Sementar, respetivamente, foram os nomes de cada um destes três momentos. Pavonear consistiu numa “migração” de seres artificiais – criaturas ambíguas entre a flor e o pavão, envasadas sobre rodas – entre o Jardim público e o interior do supermercado, onde acabariam por se tornar um equipamento utilitário para carregar as compras. Circular foi um jogo de futebol experimental, onde os jogadores inventaram in loco as regras do novo jogo, sendo que os seus movimentos estavam condicionados por compassos onde apenas se podiam movimentar em círculos. Sementar foi um ritual de plantação de um lugar invisível, através do muro que o exclui da cidade. Cada uma das ações se refere a peculiaridades dos espaços em causa: a abundância de malas de bagagem, pessoas em trânsito e carrinhos de supermercado no primeiro; as gruas que constroem um novo hotel na vizinhança que ensombra o bairro no morro da Lapa, pano de fundo enquadrado por uma baliza enferrujada e sem rede; um terreno árido e vazio num centro urbano onde domina o betão e o asfalto, isolado da cidade por um muro que é também suporte ocasional de expressão pública que tende a ser rapidamente branqueada pela autarquia.
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PAVONEAR
Passeamos cães com trela, mas não gatos. O cão consente e fica feliz por ser propriedade privada, enquanto uma ave num jardim público é um bem comum sem o saber. Dar alimento a patos que não nos pertencem é um passatempo prazeroso, mas oferecer uma palavra de conforto a um mendigo sujo torna-se um ato de desconforto que exige alguma porção de coragem. Atrelamos animais que não usamos como transporte de carga, mas puxamos bagagens sobre rodas em diversas circunstâncias no nosso dia-a-dia. Já nem a roda nem a perna são sinónimos de nomadismo. As viagens longas fazem-se sem tocar terra firme. E os nómadas dos nossos dias dividem-se em duas espécies: os que dividem os dias entre a cadeira do café onde trabalham remotamente e a cidade nova para descobrir, e os que passam o dia nos bancos de jardim e a noite na relva. O fascínio curioso pelo exótico transformou-se em desprezo baseado no tom de pele menos comum, com uma certa dose de medo da cultura alheia que achamos que já conhecemos. O excêntrico nem sempre procura a posição de não alinhar no círculo e quando ali se vê pode sentir que pertence a esse lugar de forma natural, tentar invisibilizar-se ou buscar a solução radical de se camuflar num artifício que só o torna mais dissonante. Uma ilha pode ser um jardim paradisíaco se não estiver rodeada de buzinas e fumo de tubos de escape. E as pontes podem-se contruir caminhando ou pelas ligações possíveis na estação rodoviária. Não existe distância mínima para uma deslocação se chamar migração, mas compreende-se que a migração exija uma mudança drástica de ambiente. Entre o jardim e o interior do supermercado há um oceano invisível. Chegamos ao Mundo Novo com a bagagem que levamos de casa e mesmo se atualizarmos o estilo para nos integrarmos no local nunca deixaremos de ser estrangeiros apesar de nos chamarmos de irmãos. Mas podemos ser irmãos sem termos uma única semelhança. O que não podemos é viver de novos Continentes a cada esquina onde se vendem verduras asiáticas já mortas, enquanto as ruas nos assassinam com ar sem oxigénio.
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CIRCULAR
Se nem a linha do horizonte é horizontal como saber que raio transforma uma curva em pretensiosa reta? Ponto de exclamação pode ser sinuoso também! Depende da fonte que emite a mensagem, se é seca ou corre fluida. E o carro corre, só corre, em círculos feitos de retas na cidade feita a régua. Precisamos do círculo quando não queremos andar a pé. E quando andamos a pé só procuramos a reta mais curta. A boa viagem queremos que não acabe depressa e a vida boa achamos que não deve ser sinuosa. O jogo da boa vida é mais fácil para quem quebra as regras. Quebrar as regras pode ser refazer as regras à medida de si mesmo. Girar sobre si como o Rei Sol não ajuda a vida na Terra. Ser-se Satélite sem se ser periférico. Como a âncora está para o navio, o gancho está para a grua. E o gancho para a interrogação como a grua-compasso para a exclamação duvidosa. Porque o Sol quando nasce é para todos menos para quem não tem janela no quarto. Ou para quem tem um hotel-muro à frente de casa. Impedir de viver sem proibir de comer. A não ser que as regras mudem, mas quando mudam parece que é sempre para aumentar a dificuldade ou o IVA, que nunca para de crescer. Por vezes aliviam-se regras para turistas de futebol. Faz sentido, já cá chegam cansados. Vieram a pé em caminho de terra batida por escravos livres. Ponte não aérea que se fabrica do desejo de apanhar o metro para ir trabalhar pelo salário mínimo. E a baliza do que é aceitável permanece invisível, enquanto enquadra a construção de um presente, envenenado com futuro pouco auspicioso. É o que temos, cervejas baratas na rua ao fim do dia. Podia ser melhor do que nada, mas é pior do que mais e melhor. Mais valia era balizar a demolição do bairro antes de ceder o direito de construção ao condomínio. Deixar cair a ideia, mas sem aleixar o ideal da sociedade social. Como a lapa que é cavidade maçadora no dente de gente humilde, mas para gente impertinente é delicioso gastrópode salgado. Sabemos que acontece, mas a quem é que acontece é a questão que importa. Há que saber rir da desgraça alheia porque também nos ensinaram a rir da nossa mesmo quando dói.
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SEMENTAR
Terra de Schrödinger. Um lugar que não se vê, existe e não existe em simultâneo. Um lugar por trás de muros, vê-se por fora ao não se ver o interior. De um lugar onde não se entra, desconhece-se o potencial renovador de ar puro apesar de se conhecer a área bruta de construção permitida. O índice de impermeabilização nunca será maior do que aquilo que já é e ainda assim diz-se que será aperfeiçoado. Florescer em betão e vidro daninhos. Semear ferro para vender vinhos com notas frutadas de poliéster. Flores de algodão que chegam já desfiadas a preços promocionais. Trazer mais vida ao centro que morre de claustrofobia. E carros ao parque de asfalto novo. Já ninguém se lembra que antes não era preciso saber estacionar em paralelo porque haviam lugares em espinha de sobra. Terreno vago também é solo em pousio que espera em cima da parede como Humpty Dumpty Espanhol. Para lá do muro não há inglês nem estrangeiro nenhum que saiba cimentar flores. No lado de cá do muro, sempre que o português atacou com letras chegou de imediato a milícia do branqueamento à trincha. Parar de ar condicionar os hipermercados para que ventilem livremente o cheiro niquelado. Única solução de defesa do consumidor é defender um futuro que sustente ar que não condiciona. Semear ar e vento, apenas e de forma pouco sustentável – isto é exagerando em número. Atacar com sementes é como lançar bombas de amor fresco. Soldados que marcham à distância da sua sombra por falta da sombra de uma copa frondosa. Quando acabar a água começa o fim. Quando acabar o cereal já não há geração futura. Vai sobrar uma mão para escrever o que a boca já não tinha fôlego para soprar. E ninguém para pagar com juros pela tristeza.
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Voltando ao princípio deste texto, não creio que o projeto As Cidades Impossíveis tenha sido extraordinariamente bem-sucedido em tornar o invisível – lugares e características desses lugares – evidente. Para além de ser um projeto experimental acerca das possibilidades do que pode ser a cenografia no espaço público e em confronto com o mesmo, acabou por se revelar numa exploração focada numa disciplina artística à qual ainda sou quase totalmente alheia – a performance, no caso mais aproximada ao formato de happening.
Não foi, no entanto, uma experiência falhada. Creio que a maior aprendizagem não tenha acontecido ao longo do processo, mas no final do mesmo, após a conclusão do estudo, revisitando os pensamentos e concretizações materiais produzidos durante um ano inteiro. Foi apenas no desmantelar que consegui arrumar as gavetas. E nem todas.
Recentemente percebi ainda que não me serve apenas a ação de observar exaustivamente até se tornar insuportável. É uma forma de o fazer e à qual por vezes não consigo escapar. Mas descobri uma fórmula que sinto que fala mais acerca do que me interessa: aprendi a olhar não para ver o que está lá, mas sim o que não está. Então, já não se trata só de transformar o real em impossível, mas de procurar o invisível para o mostrar como não impossível.
O impossível está apenas à distância de um delírio tornado real
Cidades Impossíveis* é um projeto de cruzamento entre arte e arquitetura, que Rossana Ribeiro criou na cidade do Porto. Entre o invisível e o impossível, a performance invade as ruas, a partir dos conceitos de Pavonear, Circular e Sementear.
Texto, imagens e vídeos: Rossana Ribeiro**
Publicado a 26-07-2022
Referências
Calvino, I. (1972/1993). As cidades invisíveis (Trad. J. A. Barreiros; Vol. 53). Teorema.
Pablo, H. (2011). Education for socially engaged art: A materials and techniques Handbook.
Siza, Á. (2013). Imaginar a evidência (Trad. S. d. Cost.; Vol. 70). Edições 70.
Cidades Impossíveis*
Rossana Ribeiro**
Rossana Ribeiro é arquiteta e artista multidisciplinar desde 2013 quando concluiu a sua formação na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto com a dissertação de mestrado intitulada “Do It Yourself: Habitar o 3º Milénio. Modelos habitacionais auto-projectados e autoconstruídos.”
Em 2021 termina o Mestrado em Artes Cénicas, com especialização em Cenografia na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Instituto Politécnico do Porto, com o projecto “As cidades impossíveis: cenografia e(m) espaço público. Espacialidades do comum entre o real e a ficção”.
Cofundadora do coletivo Suspeito, que explora as relações de interdependência entre obra, recetor e espaço, com produção regular desde 2016.
Com um percurso pessoal situado na intersecção entre arquitectura, cenografia, instalação e performance, denota uma tendência para as questões do urbano e da paisagem, muitas vezes revestindo obras e público de um cariz móbil ou nómada, abordando a criação com uma perspectiva assente nas características particulares do lugar e da população em foco.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1493428
LONGITUDE: -8.599388