Na Casa-Museu Igrejas Caeiro: som, escuta e corpo

Quem sobe do centro de Caxias, rumo ao Alto do Lagoal, numa estrada estreita, mas concorrida, ladeada por moradias descritas como “de luxo” ou “de prestígio” pelas imobiliárias, terá dificuldade em imaginar o caminho precário, não asfaltado, que, no final da década de 1950, fazia a ligação entre aquela povoação de Oeiras e os novos moradores que ali se instalaram. Um caminho longo, a pique, diariamente percorrido por carroças, bicicletas e furgonetas que abasteciam famílias de posses como a de Francisco Igrejas Caeiro (1917-2012) e Irene Velez (1914-2014), desde 1959 a viverem no cimo daquela colina privilegiada voltada para o Tejo.

A casa de Igrejas Caeiro, inaugurada em 1959, começou a ser construída em 1957, em três generosos lotes de terreno. O arquiteto, Francisco Keil do Amaral, precisava de espaço, vista e enquadramento que abrissem a casa do amigo-cliente a um espaço exterior privilegiado, que prolongasse fora de portas as linhas e a fluidez modernistas para dentro projetadas. A imprensa acorre a conhecer a nova casa do popular homem da rádio, do teatro e do cinema. Chama-lhe “vivenda de estilo hollywoodiano”.

No horizonte, apenas o Tejo e o pontilhado distante, pouco povoado, de uma margem sul ainda sem ponte. A ponte, que antes de ter nome de dia da liberdade, celebraria o ditador que a mandou construir, só em 1962 começaria a ser erguida. Igrejas Caeiro viu-a nascer à frente dos olhos, a partir do seu alpendre e do jardim. O colosso em construção, numa cidade bem mais vazia de pessoas e casas do que a de hoje, haveria de fazer eco que chegava àquele promontório. Mas, antes do som das máquinas infernais, do betão e do aço, vindos de um rio que se estreita, o espaço sonoro em que Igrejas Caeiro se move é habitado pelo que a natureza dá a ouvir, o barulho de um carro ou outro dos que o podiam ter, mais a sinfonia pendular trazida por marçanos e respetivos transportes, sobretudo pela manhã. Em tempo de ditadura, mesmo em casas abertas – e a de Igrejas Caeiro, pelas suas características pessoais e ideário oposicionista, era-o –, o volume e a liberdade das vozes dos homens são proporcionais às desigualdades sociais. A formalidade e deferência entre quem serve e quem é servido são mais silenciosas do que as vozes que nascem, vivem e, desde cedo, convivem com a liberdade. A liberdade é também a liberdade do que é dito e da espessura do som que sai da boca de cada um. Sem controlo rígido de volume e com discursos que vão além da entrada de serviço, a liberdade é terreno com outra matriz sonora, por definição em estéreo, com espaço para o ruído e a dissonância. Muito diferente da ordem institucional dos anos 1950 e 1960, que medrava no silêncio, estimulava o segredo e cultivava com brio os interditos.

As visitas guiadas que conduzo atualmente a esta casa, legada por Francisco Igrejas Caeiro à Fundação Marquês de Pombal para ser casa-museu e espaço de usufruto público, beneficiam de uma tríade de variáveis para as quais nos sentimos convocados mal entramos: o espaço (a casa e a envolvência exterior), o tempo (o vivido no exterior, mais rápido, e o tempo da casa, mais distendido) e o corpo (o do edifício que nos envolve e o nosso).

Um dos pontos altos da visita é a ida ao estúdio profissional de Igrejas Caeiro, no qual o radialista gravará os seus programas, a partir de 1959, emitidos no Rádio Clube Português. Sabíamo-lo, desde o início. Uma casa daquela envergadura arquitetónica e estética, com capacidade para ter um estúdio radiofónico, tem um interesse histórico inegável. E tem, igualmente, uma atratividade visual acrescida para as crianças, que olham para os equipamentos pretéritos como coisa de uma realidade paralela, ou para pessoas mais velhas, que aprendem por dentro o funcionamento de uma realidade radiofónica que lhes está na memória.

O que a investigadora-guia não esperava é que o exercício de escuta da voz do dono da casa visitada, na ampla sala da casa, com as cortinas abertas para o Tejo, fosse por todos tão bem acolhida.

Para quem investiga o som há, talvez, um complexo de inferioridade interiorizado, que se filia na ideia cristalizada de que a rádio é um meio ontológica e historicamente tido como afetivo, escutado no dia-a-dia nos mais variados equipamentos e plataformas, mas cujo ato de escuta atenta é desvalorizado ou subaproveitado, sobretudo para quem não faz dele prioridade estética e de investigação. Esta experiência na Casa Igrejas Caeiro mostrou-nos que, num contexto privilegiado pela tríade de que falámos – espaço/ tempo/ corpo –, a escuta é vivida como prolongamento e parte inalienável da visita.

Escolho iniciar a visita com um momento de escuta que permita perceber melhor a obra daquele que nos abre as portas de casa, dez anos depois da sua morte. Mais, interessava-me dar a conhecer pinceladas de uma estética sonora de um tempo que já não é o nosso, e de uma rádio que também já não é aquela que hoje escutamos. Ponho a “tocar” uma entrevista que o anfitrião fez a Natália Correia em 1957. O reflexo imediato da escuta, da predisposição para ela, é-nos dado pelo corpo de quem nos visita. Há um movimento de procura de conforto nos visitantes, sentados nos sofás e cadeirões da sala de estar de Igrejas Caeiro. Um estreitamento de laços físicos a um espaço que não sendo pertença, é-o de maneira especial durante os minutos que dura a conversa radiofónica entre entrevistador e entrevistada.

Poucos são os visitantes que mantêm os olhos abertos. Apreende-se melhor o que não se vê à vista desarmada quando, por dentro dos olhos, os sentidos e o corpo encontram os caminhos livres da imaginação. O que entra pelos ouvidos permanece numa escuridão, que, longe de ser breu infértil, é exatamente o contrário: condição inequívoca de luz. Quem mantém os olhos abertos, leva-os para fora de casa, em direção ao rio Tejo que corre para lá das vidraças. Os corpos soltam-se num conforto procurado. O tempo corre lento porque a

casa o permite e o exercício de escuta o fomenta. Mas, o mais que há para visitar leva-me a interromper o som da entrevista, que tem mais de 30 minutos. Convido os visitantes a que façam um exercício de escuta em casa, uma vez que o registo sonoro está disponível online. A reação é de incómodo nos olhos de alguns. Os bons modos de quem visita obrigam a alguma contenção e respeito por quem os guia, mas o esgar é de surpresa e incompreensão. Há uma voz que diz: “Mas estávamos a gostar tanto…”.

No final da sessão programada para a sala, antes da descida ao estúdio radiofónico, tento perceber até que ponto a interrupção da escuta os incomodou. Em geral, os visitantes percebem a minha escolha por forma a que a visita se faça na sua extensão, e dizem que ouvirão a entrevista na totalidade em casa. Mas há alguém que me explica o elementar do que aconteceu: “Foi a interrupção de uma imersão.”.

A escuta requer tempo e espaço, desejo e disponibilidade, corpo e imaginação. E, aquele visitante sabia-o bem, a escuta é uma possibilidade ímpar de imersão, que exige total respeito pelo seu curso. A interrupção é sempre uma amputação da experiência e dos significados nascentes. É uma negação da possibilidade de se detetar, escutando-a, a identidade expressiva da linguagem radiofónica, feita da palavra, da música, dos efeitos sonoros e do silêncio. O silêncio imposto, que corta o som abruptamente, priva quem o ouve de uma vivência que enriquece, transforma, produz e restitui significados.

A visita-passeio a uma casa, seja ela privada ou casa-museu, é feita de passos andados no seu interior e exterior. É trilhada na descoberta, inesperada ou expectável, de espaços físicos que se abrem ao visitante. Mas é também uma visita-passeio que, sem minorar a tangibilidade do espaço, a singularidade dos objetos e a beleza da arquitetura, se faz por dentro, com o som e o silêncio por bússola.

Visitar a casa de um homem da rádio é – deve ser – um convite inadiável ao conhecimento e ao usufruto do som, onde o todo audível, que é também tempo, espaço, corpo, tem de ser razão primeira. Não capricho ou mero elemento ilustrativo.

Texto e fotos: Cláudia Henriques (CECS – Universidade do Minho)

Publicado a 02-06-2023

Nota: Este micro-ensaio nasce da nossa experiência de curadoria das visitas guiadas à Casa-Museu Igrejas Caeiro, desenvolvida no âmbito da iniciativa “Os Dias da Rádio na Igreja Caeiro”, entre 13 e 19 de fevereiro de 2023. Esta programação foi promovida pelo Município de Oeiras e pela Fundação Marquês de Pombal, com produção do coletivo Poesia.FM. Na sequência, passou-se a realizar e a conduzir visitas mensais a este espaço, gerido e dinamizado pela Fundação Marquês de Pombal, sua proprietária. https://www.fmarquesdepombal.pt/casa-museu-igrejas-caeiro

 

Referências

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Courtine, J.-J. (2023). Corpo e discurso. Uma história de práticas de linguagem. Vozes.

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Pallasmaa, J. (2011). Os olhos da pele. A arquitetura e os sentidos. Bookman.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Lisboa

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