Movida pela vida social de uma mesa
Da minha varanda entretenho-me, no quotidiano, a observar a vida social de uma mesa. A mesa faz parte do mobiliário de um espaço verde da cidade de Braga recentemente inaugurado, o Parque Urbano das Camélias, apresentado pela autarquia como peça fundamental para a ideia de parque central ou ligação em rede de diferentes espaços verdes urbanos (Parque da Ponte, Parque das Camélias e Monte Picoto) da cidade de Braga.
Instalada num dos espaços retangulares abertos que ladeiam a nova escadaria que rasga a colina do Pinheiro da Gregória na vertical, a dita mesa chamou por mim desde o início da sua presença naquele recanto. Para quem foi educada num meio católico como eu, a mesa evoca a imagem da “última ceia” — no caso, com Jesus Cristo e os Apóstolos a mirarem Braga e “o seu rebanho de Deus”. Mas a mesa, feita de uma fibra metálica acastanhada, que se confunde com madeira — integrando-se perfeitamente na zona verde circundante ponteada com sobreiros e pinheiro mansos —, está ladeada de bancos corridos de ambos os lados. Por via desta configuração, à imagem da mesa como altar adiciono a da mesa–família, como expressão e forma de encontro e de comunhão. Dado que a mesa se encontra num parque urbano, um espaço desenhado como sendo público, destinado ao encontro, à interação e à convivência, parece fazer sentido que esse tenha sido o fim planeado para tal mesa.
Mas uma coisa é a cidade planeada ou desenhada e outra é a cidade praticada ou vivenciada. Partindo deste ponto de vista, “(…) esta cidade não é menos real que aquela dos urbanistas ou dos administradores. É outra (Agier, 2015)”.
Desde que tenho a mesa como companheira na minha paisagem urbana, interrogo-me sobre o destino da mesma. Será que algum dia ela se vai tornar um “lugar”, isto é, um local acolhedor para contemplar, sentar, conversar, exibir, ou para estar e desfrutar? “É lugar uma zona do espaço onde estar faz sentido”, escreveu Prado Coelho no artigo Espaços em volta, publicado a 28 de outubro de 2000 no jornal Público.
Para quem vive ao lado dela e com ela no quotidiano, esta dúvida faz todo o sentido. Mais do que um espaço de uso, em que participamos ativamente, o parque das Camélias é sobretudo um espaço de paisagem, no sentido de espaço para ser visto ou de objeto para contemplação visual. Os usos que os poucos habitantes da zona fazem do parque enquadram-se nas atividades de rotina de passeio do cão ou de passagem para zonais centrais da cidade. E é também insignificante o número de cidadãos de outras zonas da cidade ou de turistas a calcorrear o parque, muito menos ainda os que desfrutam das zonas de lazer e convívio, apesar da contiguidade espacial com a muito concorrida Via Pedonal do rio Este.
Uma mesa de tal dimensão, num espaço aberto, junto a escadas e caminhos que raramente são calcorreados é, no mínimo, um desafio à imaginação. Talvez por isso me atraia, quando a vejo de cima, da varanda do meu prédio, e atento nos modos de uso ocasionais da mesma, em diversos momentos do dia e à noite. O tamanho da mesa, bem como a sua localização num espaço aberto, ainda que acantonado, parece assustar tanto os solitários corredores ou ciclistas, quanto os pequenos grupos ou casais que nela se sentam. São as pontas da mesa os locais de eleição. Seja para conversar, seja para, nos casos dos solitários, se deitar no banco corrido e descansar, fazer exercício e até mesmo aproveitar o momento para se bronzear. Muito recentemente, vi um casal que se sentou, lado a lado, no meio do banco corrido, dando as costas para o centro da cidade. Mas rapidamente fez do tampo da mesa o assento, da colina o background e do centro da cidade a cena a ser vista e apreciada. Parece que a grandiosidade da mesa está ainda por vir, à semelhança do destino, por cumprir, do parque enquanto espaço público — usado até ao momento essencialmente como um espaço em que se transita, dificilmente se está ou vive.
Um destes dias saí de casa para sentir de perto a ambiência da mesa. Pelo caminho vi um homem com idade avançada a desfrutar de uma pausa, enquanto os seus olhos se regalavam com a vista panorâmica que o estar sentado num banco público no último patamar deste anfiteatro natural proporciona. Situação de exceção: apesar do parque estar ponteado de assentos públicos (Jolé, 2003), com um desenho que ainda convida a uma pausa (e digo ainda dado que as cidades convidam cada vez menos a esta prática), foi a primeira vez que, nas minhas caminhadas habituais por estas bandas, deparei com este tipo de sociabilidade, a da pausa e da contemplação.
Caminhar na escadaria que ladeia a mesa é decifrar aos poucos, e pelo movimento, um palimpsesto, um território onde se dispõem, em camadas, fragmentos da história local, com temporalidades diversas — as de um passado recente, condensadas, por exemplo, na presença de um portão de ferro aberto, que cria a ideia de um antes privado e fechado e de um agora público e aberto, marca que preserva a memória comunitária da quinta (a das camélias) que outrora o local foi; e a do tempo presente, com tonalidades do passado, manifesta na presença da instalação Vitrais dos irmãos Blas e Pablo Montoya, uma estrutura em tríptico de pórticos com vitrais de diferentes cores produzidos a partir de restos de chapas metálicas e sobrantes de acrílico colorido de empresas.
Para quem caminha pelas escadas, no sentido descendente, a interação com a peça instiga memórias e sentimentos espirituais de cariz religioso, mas é a sua natureza de passagem, entre um lado e o outro, que sobressai na experiência de andante. É inegável que o colorido luminoso dos vitrais suscita em quem os atravessa uma sensação quente, de proteção e de conforto — porventura apenas em dias de sol como aquele que partilho agora convosco — ainda que o efeito que a sucessão de pórticos exerce sobre o olhar seja o que mais se destaca. A disposição dos pórticos em fila e em patamares diferentes da escadaria estreita a visão panorâmica de quem a desce e conduz o olhar num só sentido — o do centro da cidade. Por instantes, para quem desce, tal imensidão parece mais palpável, como que dominada pelo olhar. Residirá aí, ironicamente, o sentido sagrado desta experiência? “Mais perto do céu”, quererá dizer mais perto da cidade e logo mais longe dali? É verdade. Este não é um local “cuja personalidade nos faça querer parar, falar mais baixo e andar mais devagar”, para usar as palavras de Berleant (1992, p. 76) quando descreve a natureza do engajamento suscitada por locais na cidade que nos atraem particularmente. Para alguém que desce a longa escadaria, o encontro com a obra funciona para reforçar a imagem do parque como portão para a cidade, precisamente o contrário da ideia estabelecida sobre os parques naturais urbanos – a de servirem como formas de fuga da mesma.
Tais vivências são consonantes com a história recente desta zona da cidade e do local alvo de requalificação urbana, o parque das Camélias, até há pouco um “espaço-entre”, terrain vague (Solá Morales, 1995) ou zona fronteiriça, limite (Lynch, 1960), entre o centro e o resto da cidade. O interessante da zona reside precisamente na hibridez da sua personalidade e nas múltiplas temporalidades que nela coexistem e justapõem. Nos meus percursos quotidianos gosto de precisamente de desfrutar desta mistura dos tempos e ambiências.
O encontro com os pórticos dos irmãos Blas e Pablo Montoya, “plantados” no parque por decisão camarária, fez-me sair do parque e regressar à estranheza que me suscitou o confronto com uma obra que alguém batizou como capela, situada uns poucos metros abaixo, numa área ainda não intervencionada junto ao Rio Este. Nesta zona-bairro caminha-se por travessas, quelhas e becos em forma quase labiríntica e em solo bastante irregular, recheado de escadarias de pedra, que contrastam com as vias pedonais perfeitamente delineadas que tipicamente encontramos nos parques urbanos. Essa obra é formada por dois oratórios, embutidos lado a lado no muro de pedra que ladeia a Travessa do Couteiro com azulejo, cimento e algum mármore. Os oratórios foram mandados construir por uma das famílias residentes no local, proprietária de três de um conjunto pequeno de fogos de habitação singelos que compõem a rua. Na voz de quem lá mora, as capelas, assim as designam, uma de devoção popular a Santo António e outra a S. José, funcionaram em tempos idos para aglutinar a comunidade daquela zona bairro – sobretudo em momentos de celebração dos santos — e consagrar a autonomia e personalidade do lugar. Ainda hoje esse marco continua a motivar a ida de curiosos à Travessa do Couteiro.
Movida pela vida social de uma mesa instalada num parque público de Braga – talvez “a mesa dos sonhos” de O´Neill —, dei início a mais uma das minhas andanças quotidianas pela zona da cidade em que vivo. Tropecei, no meu percurso pelo parque, numa peça de arte pública — que de pública ou de fazer-comum, nada tem. Talvez esta ausência me tenha feito regressar à Travessa do Couteiro — apesar de ser travessa, continua a cuidar dos que ama.
“Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. (Machado de Assis, 2011/1881)
Texto e fotos: Zara Pinto-Coelho
Publicado a 24-02-2023
Referências
Agier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem eo centro. Mana 21(3). https://www.scielo.br/j/mana/a/wJfG33S5nmwwjb344NF3s8s/?lang=pt
Assis, M. de (2011/1881). Ideia fixa. Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Edição eletrónica. https://machadodeassis.net/texto/memorias-postumas-de-bras-cubas/5985/chapter_id/5986
Becker, J. (2004). Public art: an essential component of crating communities. Monograph, 1-16. https://intranet.americansforthearts.org/sites/default/files/PublicArtMonograph_JBecker.pdf
Berleant, A. (1992). The aesthetics of environment. Temple University Press.
Jolé, M. (2003). Quand la ville invite à s´asseoir. Le banc public parisien et la tentation de la dépose. Les Annales de la Recherche Urbaine, 94, 107-115
Lynch, K. (1960). The image of the city, Cambridge, MIT Press.
Sola-Morales, I. R. (1995). Terrain vague. In Ignasi de Solà-Morales Rubió, Anyplace (pp. 118-123). MIT Press.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Braga
LATITUDE: 41.5369392
LONGITUDE: -8.423685599999999