Metáforas visuais da (ruína da) cultura digital

Computadores na terra; monitores espalhados em florestas; plantas ligadas a cabos informáticos… que combinações são estas? Este breve ensaio fotográfico regista encontros inimaginados com hardware informático em espaços verdes de várias regiões do país. O cruzamento com esses objetos hiper-modernos em passeios que buscavam o “natural”, o não “man-made” inspiram reflexões diversas.

 

De uma secretária ao chão de uma floresta

Figura 1: Floresta nas imediações de Águeda (Novembro de 2019)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Figura 2: Floresta nas imediações de Águeda (Novembro de 2019)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Estamos habituados a ver computadores em escritórios, em gabinetes ou em nossas casas, ou seja, sempre no interior de edifícios, sobretudo tratando-se de “desktops”, habitualmente com grandes monitores. Encontrar computadores no exterior seria motivo suficiente de estranheza. Vê-los no chão ainda mais. Quando esse chão é o de uma floresta cresce o sentido de inusitado.

Mas será isto mesmo estranho ou invulgar? Numa época em que tanto se fala de economia circular, onde terminam realmente os nossos objetos? Aquilo que num momento é a mais moderna tecnologia acabou, neste caso, estilhaçado e despejado no solo de uma floresta situada a escassas centenas de metros de uma cidade. A dado momento, alguém decidiu retirar estes computadores de espaços construídos e usar este espaço “natural” como lixeira das suas vidas (profissionais? pessoais?). Empregam-se aqui aspas porque, apesar de habitualmente chamarmos “natureza” ao que vemos nestas fotografias, trata-se de espaços há muito florestados/plantados pelo Homem; o conceito de “natureza” é, na verdade, profundamente contestado (Macnaghten & Urry, 1998). Mas, mesmo nas escassas áreas do planeta que são ainda naturais, encontram-se atualmente quantidades enormes de resíduos diversos das práticas humanas, por exemplo em forma de (micro-)plástico ou de substâncias químicas de vários tipos. Estas fotografias podem ser lidas como metáforas do Antropoceno ou do “fim da natureza” que McKibben anunciava já em 1989. Anteriormente vista como algo separado dos seres humanos, a natureza é hoje marcada de forma indelével pelas ações de milhares de milhões de pessoas.

As tecnologias da comunicação e da informação são hoje uma das fontes de “lixo” mais preocupantes, uma vez que, para além de metal, vidro e plástico, contêm elementos químicos impossíveis de reciclar e de grande perigosidade. Apesar das associações simbólicas com as sociedades pós-industriais, os meios eletrónicos de comunicação têm uma negra pegada ambiental (Maxwell & Miller, 2012). Os restos dos nossos telemóveis, computadores, televisores, tablets e afins são exportados para fora dos espaços “seguros” da Europa e da América do Norte, terminando em muitos casos em países africanos, com consequências profundamente danosas para o ambiente local e para a saúde humana. A provocatória pergunta impõe-se: sendo assim, porque não alojar esses resíduos no nosso próprio ambiente? Não serão estas fotografias expressão de um ato mais honesto e justo do que a gestão neo-colonialista dos lixos que produzimos?

 

Oráculos da T/terra

Figura 3: Lagoas de Bertiandos em Ponte de Lima (Janeiro de 2020)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Figura 4: Lagoas de Bertiandos em Ponte de Lima (Janeiro de 2020)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Nas fotografias acima vemos parte de uma criação artística situada na Paisagem Protegida das Lagoas de Bertiandos e São Pedro de Arcos. No solo, à volta de um espaço quadrado, repete-se a construção: um monitor encapsulado por uma janela/porta para a terra. Nalguns casos, a presumível falta de manutenção significa que a terra já quase engoliu o monitor, como na segunda fotografia.

Que sentidos sugere esta criação artística? Porquê ligar os computadores à terra? O que poderá significar a estrutura metálica que parece constituir um canal de comunicação para o interior da Terra? Serão os computadores os oráculos do nosso tempo que permitem aceder a verdades “profundas” ou uma espécie de “condutas” para outros níveis da realidade?

 

O novo totem

Figura 5: “Cerca” (área de terrenos agrícolas e florestais) do Mosteiro de Tibães em Braga (Setembro de 2020)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Figura 6: “Cerca” (área de terrenos agrícolas e florestais) do Mosteiro de Tibães em Braga (Setembro de 2020)
Crédito: Anabela Carvalho

 

O computador pode também constituir-se em totem, ou seja, mais uma expressão de veneração espiritual. Nesta construção, encontrada num passeio na Cerca do Mosteiro de Tibães, o totem não representa animais, como a águia ou o lobo, como era comum nos totens de várias culturas ancestrais. Mas, como nelas, liga-se à terra e integra elementos naturais, neste caso plantas, que se “fundem” com as materialidades da nossa cultura digital. Como referido acima, não há uma única visão da “natureza”. A Tecno-Natureza e outros híbridos podem constituir-se nos novos objetos teológicos (Kull, 2016).

 

Última morada improvável para o que já foi moderno

Figura 7: Pequena floresta nas imediações de Braga (Fevereiro de 2021)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Figura 8: Pequena floresta nas imediações de Braga (Fevereiro de 2021)
Crédito: Anabela Carvalho

 

Com um hotel de cinco estrelas como pano de fundo (Hotel Meliá Braga), a primeira fotografia remete-nos para a “fast culture” em que vivemos: uma constante ânsia de acumulação, de maior prazer, de maior velocidade. As “peças” dessa “fast culture”, como as da “fast fashion”, rapidamente são descartadas, encontrando muitas vezes a sua última morada em lugares improváveis. O “fast capitalism” planeia rigorosamente a obsolescência dos nossos gadgets eletrónicos para se suster e se acelerar continuamente (Agger, 2004). A própria obsolescência humana encontra-se talvez já no horizonte (Müller, 2016).

A sanita que se encontra no primeiro plano da segunda fotografia, em justaposição com o interior de um monitor e com garrafas de plástico, não faz parte de uma criação artística. Mas pode ver-se aí uma mensagem sobre a nossa inebriada modernidade e o seu “day after”.

 

Anabela Carvalho

Março/2021

 

Referências

Agger, B. (2004). Speeding up fast capitalism: cultures, jobs, families, schools, bodies. Londres: Routledge.

Kull, A. (2016). Cyborg and religious? Technonature and technoculture. Scientia et Fides  4(1), 295-311. DOI: 10.12775/SetF.2016.016

Macnaghten, P. & Urry, J. (1998). Contested natures. Londres: Sage.

Maxwell, R. & Miller, T. (2012). Greening the media. Oxford: Oxford University Press.

McKibben, B. (1989). The end of nature. Nova Iorque: Random House.

Müller, C. J. (2016). Prometheanism: technology, digital culture and human obsolescence. Londres: Rowman & Littlefield.

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Braga

LATITUDE: 41.5559532

LONGITUDE: -8.4785837