Mercado e moda: estética que é poder
Desloco-me à Praça à procura das cores, dos cheiros e dos costumes que a associam a um desfilar comunicacional em contínuo fluxo e refluxo. Mas deixo-me surpreender mais pelo que esconde, do que pelo que expõe.
É factual. Uns dias depois do S. João e às portas do S. Pedro, estão lá as ervas de cheiro: limonete, cidreira, manjericos, toda a profusão que antecede a secura do verão. Depois das agruras do frio, a exuberância visual e tátil do tomate coração de boi antecipa sabor e textura. Batatas novas pintalgadas a rosa, morangos tão brilhantes quanto perfeitos, na sugestão de aroma e sabor. É preciso não esquecer o mosaico de cores expostas em caixas, cestos, baldes, frascos e sacos. Inevitavelmente, os cheiros, tão fundamentais para dar identidade a um look, ainda que estes não sejam os elementos mais evidentes de um desfile. E a postura corporal, como nos apresentamos para oferecer um produto. Praça e moda em tudo semelhantes, na sua distinção fundadora. Não será forçado, posto isto, que se façam interpretações semióticas numa e noutra atividade, ao nível da persuasão publicitária.
Talvez por ser hora do almoço, a azáfama da compra e venda amainou. O que faz sublinhar o corpo de trabalho que cada uma destas pessoas carrega, algumas delas aproveitando a calmaria para almoçar ali mesmo, na banca enfeitada como a mais cuidada vitrine de uma boutique. Se o comércio reduziu, o trabalho não para. Ouvem-se, agora, barulhos de caixas vazias, atiradas para um canto, o carrinho da limpeza passando o chão. Há tempo para dois dedos de conversa entre vendedores. Penso, também, no capital simbólico do espaço, onde uma modernidade forçada alberga o improviso: guarda-sóis colocados para proteger os produtos do sol. Releio Bourdieu (1996) à procura da explicação para o que aqui se presencia e chega a ser irónico, de tão premonitório. “De fato, aqueles que conseguem manter-se nas posições mais aventurosas por tempo suficiente para obter os lucros simbólicos que elas podem assegurar recrutam-se essencialmente entre os mais abastados, que têm também a vantagem de não ser obrigados a consagrar-se a tarefas secundárias para garantir sua subsistência” (Bourdieu, 1996, p.295).
Referia o corpo de trabalho. E ele é uma revelação de mãos que apanham alfaces, braços que carregam cestos, pernas que se apressaram para a estreia do comércio: a primeira compra dita o sucesso do dia.
Ao redor da praça, o que paira? A Garrafeira do Mercado, cafés, comércio de carnes. Lá ao fundo, a torre da Igreja do Carmo, tão consonante com a Braga onde nasceu o edifício de raiz do mercado e outros que o antecederam. Agora, lá onde o conservadorismo se forjou, metamorfoseou-se a contemporaneidade. Veja-se o antigo quartel da GNR, as ripas de madeira que revestem a renovada Praça. Ainda assim, caixas atiradas para um canto continuam a ser caixas atiradas, os gritos do trabalho permanecem imperativos e urgentes, um ar condicionado reverbera uma toada gasta e carrinhos monta-cargas atestam o esforço da labuta. Se há glamour no mercado (e há) talvez que este resida na estética do quotidiano. Neste ponto, a experiência de circular pelo mercado, assemelha-se, em tudo, à estética da lavandaria de Saito (2017). Não estamos, é certo, perante uma obra de arte, tal como se convencionou apreendê-la e caracterizá-la. Contudo, se convocarmos o tipo de experiência realizada (os cheiros, as cores, a atração por este ou aquele produto) e as emoções que nos provocou, entramos num nível de compreensão do sentido estético, que se estende à comunidade. Tomar consciência destes valores simbólicos ritualizados em gestos banais, não só nos torna mais atentos ao outro (preferimos um vendedor que se prepara com esmero para a venda e não um acumular anónimo de produtos numa grande superfície), como nos torna mais ativos num mundo cuja finitude devemos respeitar e proteger.
Se no mercado tudo se resume a uma estética do quotidiano, na moda, há uma intencionalidade de base, que a torna mais próxima da atividade artística. Mas, começando a moda num desenho preciso e intencional, o seu uso transforma uma peça de roupa num objeto que age num contexto social (um momento, um estatuto, uma atitude), que a banaliza, mesmo quando ela se apresenta como uma forma de intervenção ritualizada. A transformação de um look numa estética do quotidiano consciente, é, possivelmente, uma das maiores forças da moda: eu sou assim, esta é a pele que eu escolhi e não a que eu herdei, esta é a forma camaleónica que encontrei para me expressar. Seja do espaço do terrado para a mesa de uma família ou da sofisticação criativa de um desfile para um corpo anónimo, tudo parece desaguar no quotidiano concreto das nossas vidas. O uso que lhes atribuímos é diverso e, na maior parte das vezes, inteiramente subjetivo e, sobretudo, intersubjetivo (de Almeida, 2004). Ambas as apropriações podem apoiar-se num gesto funcional (comprar um produto para consumo), mas não menorizemos o seu poder. Atentemos em Inglis: “De certa forma, o estilo é sempre uma revolta contra a conformidade percebida, um meio pelo qual uma pessoa pode dizer ao mundo à sua volta que eu sou eu, sou mais do que apenas o trabalho que faço ou o papel que desempenho. O estilo e a rebeldia estão intimamente ligados” (2005, p. 42). E, já agora, retomemos Saito: “O que devemos fazer com este poder da estética?” (2017, p. 196). Responde: “Devemos também resistir à atração das roupas, sapatos e iphones novos, com estilo e na moda e continuar com os vulgares looks obsoletos, tanto tempo quanto a sua performance funcional for satisfatória” (Saito, 2017, p. 196). Como nos vestimos contém uma intenção, mesmo que enraizada na efemeridade do dia-a-dia. Compramos, nos produtores locais, maçãs ou azeitonas embebidas em rituais comunicacionais primordiais. Tudo isso se prova, se sente e se conjuga numa ação.
Praça/Braga, 28 de Junho de 2022
Texto e imagens: Teresa Lima
Publicado a 07-07-2022
Referências
Bourdieu, P. (1996). As regras da arte. (M.L. Machado, trad.). Companhia das Letras.
de Almeida, M. V. (2004). O corpo na teoria antropológica. Revista de Comunicação e Linguagens, 33, 49-66.
Inglis, D. (2005). Culture and everyday life. Routledge.
Saito, Y. (2017). Aesthetics of the familiar: Everyday life and world-making. Oxford University Press
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Braga
LATITUDE: 41.5542819
LONGITUDE: -8.427577700000002