Memórias e imagens do comércio tradicional em Braga

As casas de comércio tradicional são lugares de memória, situados no limiar entre o espaço interior e o exterior, o dentro e a rua. São locais de “quase-habitação”, onde os que aí trabalham ou os seus clientes habituais acumulam vivências, histórias. Nas cidades em constante transformação, estas casas são espaços privilegiados onde não apenas se conservam antigas estruturas – prédios, mobiliário e objetos -, mas também vestígios dos fazeres, dos costumes e personagens de outros tempos.

A Passeio tem dedicado atenção especial a estes lugares, num trabalho que envolve visitas aos estabelecimentos, entrevistas, registos fotográficos e audiovisuais, além da digitalização dos álbuns de família. As memórias dos comércios confundem-se frequentemente com as histórias das famílias que os gerenciam, atravessando diferentes gerações.

Em Braga, ainda resistem algumas «casas centenárias» inauguradas pelos avós, ou bisavós dos atuais proprietários. Um levantamento feito pela Câmara Municipal como parte do projeto Lojas com História, apontou 46 estabelecimentos, sendo 15 deles inaugurados há mais de cem anos.

Para um passeio por estas histórias, escolhemos, neste primeiro momento, três estabelecimentos centenários: a Correaria Moderna, que tem à frente o artesão de couro e comerciante, Carlos Guimarães; a retrosaria Pereira das Violas, onde Carlos Sarmento divide o trabalho com as suas filhas; e a Óptica Cerqueira Gomes, tida como a primeira ótica da região do Minho e que é gerida pelo optometrista José Cerqueira e pela filha.

Nesta Galeria, estão dispostas algumas das fotografias encontradas – novas e antigas – e também uma breve edição de entrevistas em áudio com os três proprietários.

Propomos um olhar sobre estes lugares que sobrepõe passado e presente, permitindo conhecer os seus personagens, fazeres e saberes, a partir das imagens que compõem a memória pessoal e coletiva (Candau, 2017), assim como a memória do lugar – criadas, recriadas e repassadas entre as gerações.

Cada imagem, material ou imaginária, é sempre uma instância de ligações possíveis. Melot (2015) fala da imagem como uma relação. Exemplo disso é uma parede no segundo piso da Óptica Cerqueira Gomes, que remete ao vão que ali estava anteriormente e que levava ao prédio vizinho. Era do lado de lá onde, no início do século XX, a bisavó fabricava chapéus, inspirada nas tendências de Paris. Foram muitas as viagens dos bisavós à capital francesa, que renderam ainda as novidades tecnológicas da época, dos dispositivos eletrónicos que lá se vendiam às lentes óticas. Histórias não presenciadas por José Cerqueira, mas que são compartilhadas em família.

Na Correaria Moderna, a placa de aço com a imagem de um cavalo tem data anterior à fundação da casa. Remete para a histórias como a tentativa de remoção do letreiro para dar espaço à passagem dos elétricos naquela rua. No álbum da família, uma fotografia mostra a vitrine da loja exibindo bolas em couro. A venda de artigos desportivos foi uma estratégia para contornar a crise dos anos de 1970, quando, após a revolução de 25 de Abril, os clientes que compravam artigos para cavalos diminuíram drasticamente.

Algumas das bolas ainda estão guardadas na oficina, espaço que exala os cheiros de couro. Cheiros esses que marcaram a infância de Carlos. Era também este o espaço onde fazia os trabalhos de casa e as primeiras tarefas enquanto artesão. É ainda a oficina que resgata a lembrança dos jogos de botão e das dezenas de crianças que brincavam pelas ruas de Braga até ao anoitecer.

Também nos fundos da loja Pereira das Violas, há um balcão, já bem gasto e empoeirado. Este foi o primeiro balcão do estabelecimento, onde o pai de Carlos Sarmento recebia os clientes e onde a mãe o embalava quando bebé, usando como berço uma das gavetas.

O choque com esta passagem do tempo ressignifica estas memórias/imagens, atualizando-as numa dupla direção, sobre o futuro e o passado, à maneira do que Walter Benjamin descreve com a expressão «imagem dialética».

As imagens, mas também a «imaginação criadora», nos termos de Bachelard (1957) – enquanto “faculdade de criar imagens” -, permitem entretecer espaços e temporalidades, expandidos numa cartografia de espessuras permanentemente variáveis. Tanto os objetos, como as histórias narradas testemunham, mais do que um arquivo mnemónico, ou um repositório arqueológico a descobrir, uma possibilidade de re(criação) imaginativa.

Por Helena Pires, Fábio Marques e Sofia Gomes

Ficheiros audio

Entrevista a Carlos Guimarães – Correaria Moderna
Entrevista com Carlos Sarmento – Pereira das Violas
Entrevista com José Cerqueira Gomes – Óptica Cerqueira Gomes

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Braga

LATITUDE: 41.5510621

LONGITUDE: -8.4219475