Manchas de Cor e Limpezas nas Fachadas do Porto
Há mais de uma década, no período em que a autarquia era liderada por Rui Rio, o Porto enfrentou uma campanha rigorosa de limpeza urbana. Nessa altura foi criada a Brigada Anti-Grafitos, responsável por apagar de forma implacável qualquer vestígio de graffiti e street art das paredes da urbe, sem distinção entre vandalismo e expressão artística.
Embora esta brigada tenha sido oficialmente extinta em 2014, ainda hoje técnicos camarários cobrem frequentemente os graffiti das fachadas com tinta, muitas vezes de uma cor diferente da original do edifício. Estas pinturas criadas por estas ações de limpeza camarária criam manchas de cor, que levantam questões sobre a legalidade e a legitimidade destas intervenções. Porque é que as pinturas (manchas) deixadas pela Câmara Municipal são permitidas, enquanto o graffiti é considerado ilegal, quando ambos criam uma alteração à fachada original? Essa contradição convida a uma reflexão mais profunda sobre quem realmente detém o direito de moldar a paisagem urbana (Lefebvre, 2012).
Em 23 de agosto de 2013, a Lei n° 61/2013[1] foi aprovada, marcando uma mudança significativa na forma como o graffiti e outras intervenções urbanas passaram a ser tratadas em Portugal. Esta lei criminaliza a realização de “grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração, ainda que temporária, das características originais de superfícies exteriores de edifícios,” impondo coimas que podem chegar a 25.000€. A intenção do legislador era combater o que era percebido como “vandalismo” e proteger as fachadas das cidades da “poluição visual”. Contudo, ao classificar todas as intervenções visuais no espaço público como crime, a lei também restringiu a liberdade de expressão de muitos artistas, que viam nas paredes da cidade um espaço legítimo de criação.
Para aqueles que desejam realizar uma intervenção artística legalizada, sejam artistas ou proprietários dos edifícios, as barreiras são significativas. É necessário não apenas obter a autorização do proprietário do imóvel, mas também a aprovação de um projeto pela câmara municipal e o pagamento de uma taxa. No Porto, essa taxa foi regulamentada em 2013, e incluída na Tabela de Taxas Municipais do Código Regulamentar do Município. Segundo esta regulamentação, o custo mínimo para licenciar um graffiti ou mural de até oito metros quadrados é de 40 euros, com um acréscimo de cinco euros por cada metro quadrado adicional e por cada período de 30 dias. Esta abordagem, que equipara a arte urbana à publicidade, tornou a legalização das obras praticamente inviável para a maioria dos artistas.
É nesse contexto de combate ao graffiti que surge a Brigada Anti-Grafitos, com o objetivo de limpar a cidade de qualquer graffiti, independentemente da sua natureza ou qualidade artística. A brigada removia implacavelmente tags, throw-ups e até murais complexos, visando manter as fachadas da cidade “limpas”. Essa estratégia gerou protestos (Martins, 2013) de artistas e habitantes que viam o graffiti e a arte urbana como formas legítimas de expressão da individualidade (Simmel, 1903) e de enriquecimento do espaço público.
A resistência dos cidadãos pode ser compreendida através das ideias de Michel de Certeau, que explora como as pessoas comuns interagem com o espaço urbano de maneiras que desafiam as estruturas de poder. No livro The practice of everyday life (1980), Certeau distingue entre “estratégias”, práticas dos poderes dominantes para controlar o espaço, e “táticas”, práticas dos cidadãos para subverter esse controle e reivindicar o espaço público como um local de expressão pessoal e coletiva. No Porto, a Brigada Anti-Grafitos representava uma “estratégia” de controlo, enquanto o graffiti e outras formas de arte urbana eram “táticas” de resistência e subversão. Como forma de protesto, algumas pessoas desenharam uma linha ao longo de paredes recém-pintadas pela brigada. Para eles, o custo era apenas de 3€ (o preço de uma lata de spray), enquanto para a autarquia o custo era muito maior. Em 2013, o município do Porto revelou que o orçamento da brigada ultrapassou os 150 mil euros num ano (Lusa, 2013). As táticas de resistência (Certeau, 1980) exemplificam como os cidadãos podem desafiar as estratégias institucionais e a hegemonia sobre a estética da cidade.
Com a eleição de Rui Moreira em outubro de 2013, a postura da autarquia em relação à arte urbana mudou, refletida na campanha da sua candidatura, que incluía pinturas do artista urbano Mr. Dheo. Após a sua eleição, a Brigada Anti-Grafitos foi formalmente extinta, mas a limpeza das paredes da cidade continuou com uma abordagem diferente. Sob a nova administração, apenas intervenções consideradas “vandalismo” — como tags e throw-ups — eram removidas, enquanto personagens e ilustrações mais elaboradas eram preservadas. Em paralelo, foi criado o Programa de Arte Urbana do Porto, que desde 2014 promoveu mais de uma centena de intervenções artísticas com a participação de artistas nacionais e internacionais. Este programa pode ser visto como uma tentativa de estabelecer uma “ordem” controlada, limitando a espontaneidade e a expressão livre no espaço público, em linha com as observações de Sharon Zukin (2009) sobre o controle da cultura urbana como um meio de gerir a estética e a gentrificação das cidades.
Apesar dessas mudanças, a prática da limpeza seletiva continua a gerar controvérsia. A decisão sobre o que deve ser removido ainda está nas mãos de funcionários da câmara sem formação artística, que atuam como curadores das ruas do Porto sem o devido conhecimento. Isso levanta questões importantes sobre o papel do Estado na definição do que é arte legítima e sobre quem realmente detém o direito à cidade — um conceito central nas teorias de Henri Lefebvre (2012/1968) e David Harvey (2012). Quando um funcionário decide apagar uma intervenção artística e preservar outra, exerce um poder de curadoria, excluindo os cidadãos do processo de decisão sobre o valor cultural no espaço público. Embora estas ações sejam executadas por funcionários no terreno, elas refletem decisões e diretrizes institucionais mais amplas. Surge, então, a necessidade de questionar em que medida essas decisões são pautadas por critérios claros ou se há margem para interpretações subjetivas que afetam a paisagem urbana. A relação entre a aparente autonomia dos funcionários e a orientação institucional da Câmara é crucial para entender como o espaço público é gerido e quem, em última instância, detém o poder de moldar o espaço urbano da cidade.
A situação no Porto, marcada pelas manchas de tinta sobre graffiti e a controvérsia em torno da arte urbana, aponta para um conflito profundo sobre o controle do espaço urbano. Como podemos entender a diversidade e a vitalidade das ruas não apenas como desafios a serem geridos, mas como elementos que contribuem para a dinâmica urbana? A arte urbana, nesse contexto, pode ser vista como uma parte intrínseca da identidade da cidade, algo que não apenas existe para ser tolerado, mas que tem o potencial de ser celebrado. Esta perspectiva abre caminho para uma reflexão crítica sobre o papel da arte no espaço público e como diferentes vozes — sejam de artistas, moradores ou autoridades — podem ser valorizadas num processo mais inclusivo de construção da cidade.
A questão da inclusão é crucial neste contexto. Quando a decisão sobre o que constitui arte legítima recai sobre funcionários não especializados, há o risco de marginalizar formas de expressão que não se encaixam nas normas estéticas dominantes. Isso pode resultar na exclusão de grupos sociais que utilizam o espaço urbano para manifestar suas identidades e resistências. Zukin (2009) adverte sobre a possibilidade de uma curadoria pública que perpetue desigualdades sociais, favorecendo determinados grupos em detrimento de outros. Já David Harvey (2012) reforça a necessidade de garantir que o direito à cidade seja acessível a todos, enfatizando a importância da participação cidadã nas transformações urbanas.
O desafio de definir o que deve ser preservado ou removido nas ruas da cidade levanta questões sobre quem decide e que interesses são representados. Será que a curadoria do espaço público reflete verdadeiramente a diversidade e a pluralidade de vozes urbanas, ou está a reforçar normas e estéticas dominantes? E como é que as dinâmicas de poder que moldam a paisagem urbana afetam a liberdade de expressão e o direito dos cidadãos de influenciar o espaço que habitam (Lefebvre, 2012/1968; Harvey, 2012)? Essas questões indicam que o Porto, assim como outras cidades, enfrenta o dilema de equilibrar a ordem (Zukin, 1996) com o respeito pela diversidade das vozes urbanas. As tensões em torno da arte urbana podem revelar algo mais profundo sobre a forma como as cidades gerem a criatividade e a dissidência. A verdadeira questão pode não ser a resolução desse conflito, mas a capacidade de abraçar a complexidade do espaço urbano como um reflexo das variadas experiências e identidades que nele co-existem.
Ana Muska Castro, 2024.
Nota:
[1] Lei n.º 61/2013 de 23 de agosto em Diário da República. Disponível em: <https://dre.pt/pdf1sdip/2013/08/16200/0509005092.pdf>
Referências:
Certeau, M. de. (1984). The practice of everyday life. University of California Press.
Harvey, D. (2012). Rebel cities: From the right to the city to the urban revolution. Verso.
Jacobs, J. (1961). The death and life of great american cities (1.a ed.). Random House.
Lefebvre, H. (1968/2012). O direito à cidade (R. Lopo, Trad.). Letra Livre.
Lusa. (2013, março 21). Não será por falta de verba que Câmara do Porto deixa de limpar “graffiti”. PÚBLICO. https://www.publico.pt/2013/03/21/local/noticia/nao-sera-por-falta-de-verba-que-camara-do-porto-deixa-de-limpar-graffiti-1588671
Martins, A. J. (2013, maio 24). Graffiters ameaçam responder à destruição de pintura de Hazul. PÚBLICO. https://www.publico.pt/2013/05/24/p3/noticia/graffiters-ameacam-responder-a-destruicao-de-pintura-de-hazul-1817360
Simmel, G. (1903/2012). The metropolis and mental life. Em The urban sociology reader (2a Edição, pp. 23–33). Routledge.
Zukin, S. (1996). The Cultures of Cities. Wiley.
Zukin, S. (2009). Naked city: The death and life of authentic urban places. Oxford University Press.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1579438
LONGITUDE: -8.629105299999999