Londres: O “castigo” das meninas paquistanesas

Estudar o riso enquanto gratificação emocional despertou em mim uma atenção muito particular para com o fenómeno no quotidiano. O que partilharei de seguida é apenas uma das muitas coisas de que me apercebi, achei interessante e registei numa espécie de “diário de bordo”, que tenho vindo a completar nestes últimos anos. Alguns relatos são recentes, outros nem tanto, mas todos eles de algum modo marcaram-me e, por isso, tenho ultimamente tentado (re)visitá-los com outro olhar. O que vou contar passou-se nas primeiras semanas de 2023.

Não sei se pela minha cabeça a perambular de um lado para outro, enquanto passava uns segundos pelo sono e acordava meio sobressaltado, pelo meu cabelo totalmente desmazelado ou pelo meu cachecol verde (do Sporting) enrolado até aos olhos, a certa altura, em Londres, um grupo de meninas (que mais tarde descobri que eram paquistanesas) começou a rir-se de mim no autocarro. Não era para mim. Era mesmo de mim. No início, tenho de admitir, fiquei um pouco aborrecido, e até fiz cara de mau. Algo que resultou prontamente, pois pararam logo de rir. Todavia, não muito tempo depois, caiu em mim um remorso imenso pelo que tinha feito. O riso é delas e devem usá-lo como e com quem quiserem, pensei. Para além disso, o riso é uma coisa muito íntima, que de alguma forma edifica a relação daqueles que o partilham. Como pude pensar que tinha o direito de o parar? Como pude ser tão injusto e cruel? Fiquei muito irritado e incomodado com o que tinha feito. Precisava fazer alguma coisa! No meio de uma avalanche de ideias, decidi então começar a fazer “caretas”. Resultou! Voltaram a rir-se de mim, e desta vez posso dizer que o fizeram com mais vontade e intensidade ainda. Que alívio!

Tenho um apego muito particular por uma parte da teoria de Henri Bergson (1993), a qual refere que o riso é como que um “castigo” da sociedade para com aqueles que de algum modo estão a achar-se acima dos outros, ou seja, acima das leis e da mecânica social (pelo que dizem ou fazem). O riso é, nesse entender, como que uma buzina social, um alerta, dos outros para nós, de fora para dentro, do “nós” para o “eu”. Ignorar esses risos é, assim, ignorar uma boa oportunidade para refletir sobre nosso lugar na sociedade e em que ponto estamos a merecer ser por ela ajustados, castigados, ajudados.

Nunca tinha parado para pensar nas minhas figuras. Mas aquelas crianças, de algum modo, ajudaram-me. No olhar de Henri Bergson (1993) foram como que usadas pela sociedade para me chamarem à atenção, para me porem no sítio, para me acordarem, para me dizerem, se fosse possível traduzir, algo como: “acorda, estás em sociedade e é como ser social que te deves comportar”. Castigaram-me, evidentemente no sentido menos maléfico da palavra, mas muito merecidamente.

Henri Bergson (1993) vê no riso uma coisa muito interessante: uma chamada de atenção que nos lembra que somos humanos, e que não é como deuses, nem como obras de arte, mas como humanos que nos devemos comportar. Alguém que se “arma em fino”, normalmente, tem do resto da sociedade uma buzina, um castigo, que, pode no olhar bergsoniano, ser feito através do riso dos outros. Muitos outros autores defendem uma ideia parecida com esta, como Norbert Elias (1994) e Friedrich Nietzsche (2000), ainda que cada um o fundamente ao sei jeito.

Eu, de algum modo, “armei-me em fino”, desrespeitei algumas leis sociais, ainda que inconscientemente. Pensei, talvez, que não seria notado no meio de uma cidade tão aberta. Mas enganei-me. Fui apanhado! Essa buzina tocou. Era uma questão de tempo, acho eu. O corpo social usou aquelas crianças, mas com o tempo teria usado outras pessoas para se rirem de mim. Para me dizerem: “acorda!”. Não posso deixar de pensar que podia ter parado essa buzina por alimentar nessas crianças o medo. Não o fiz. Ou fiz. Mas, felizmente, fui a tempo de remediar. Fui a tempo de acordar, nos dois sentidos…

Texto: Abílio Almeida

Publicado a 14-04-2023

Referências

Bergson, H. (1993). O riso: ensaio sobre o significado do cómico (G. d. Castilho, Trans. 2.ª ed.). Lisboa: Guimarães Editores.

Elias, N. (1994). O processo civilizador: uma história dos costumes (R. Jungmann, Trans.  Vol. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Nietzsche, F. (2000). A gaia ciência (A. Margarido, Trans. 6.ª ed.). Lisboa: Guimarães Editores.

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Inglaterra

LATITUDE: 51.5072178

LONGITUDE: -0.1275862