Lisboa (Fragmento #03)
Olho para baixo. Está muito movimento hoje e a chuva não ajuda. Os carros concentram-se mais, andam mais devagar, e o som aumenta de intensidade com o piso molhado. Hesito se fique a olhar mais um pouco, talvez assista a um acidente. Com este tempo é provável que sim.
Olho para o relógio, já não tenho tempo. Tenho que me preparar para sair.
Olho em frente, vejo a luz acesa na casa da Helena. Ela espera-me. Há quantos anos não falhamos a tarde semanal, uma única vez que seja? O final das tardes de sábado, em frente à televisão a ver um filme, que passámos a semana inteira a discutir até chegarmos a um consenso.
Olho para baixo. Raio da estrada. Já as duas morávamos nestas casas, quando a câmara decidiu construir uma grande estrada, “uma importante via de circulação”, disseram eles. Se calhar a cidade ganhou. Nós é que perdemos. Perdemos o terreiro, onde os miúdos jogavam à bola, onde jogávamos à apanhada, onde se fazia a feira e os vendedores de castanhas assadas nos perfumavam com odores outonais. Agora o cheiro é de combustível e pneu queimado, o som é de motores, buzinas, ambulâncias e camiões.
Olho para a janela da Helena. Antes, só precisava de descer o elevador, atravessar o terreiro e subir ao andar dela. Agora a estrada cortou-nos a ligação, mas não a amizade. Cortou e prolongou a distância entre lares. Agora tenho que andar 15 minutos até ao viaduto que permite atravessar a estrada, depois outros tantos no sentido inverso até casa da Helena. E depois regressar. Os outrora 5 minutos foram transformados numa hora, em nome do progresso.
Olho para a estrada. Coitado do Amílcar, o meu vizinho do 2ºB. Fez como tantos outros fazem, atravessou aqui mesmo a estrada, para ir ao minimercado que fica mesmo em frente. Mas um homem de 75 anos… Que me lembre, nos últimos 10 anos já ali ficaram 4 do nosso bairro. Eu, graças a Deus, tenho saúde para andar até ao viaduto. Não sei por quanto tempo. A Helena, pobrezita, já há uns anos que as pernas e as ancas mal lhe permitem sair de casa, quanto mais vir aqui. Por isso sou sempre eu que vou, mas a idade também vai pesando e não sei por quanto tempo mais vou conseguir.
Olho para o relógio, tenho que ir.
Chamo o elevador.
Publicado a 22-11-2022
Ficha Técnica
F#03
Som gravado com binaurais Roland CS-10 EM
Lisboa (21.10.22 ; 08:58)
38º 44′ 53,38”N ; 009º 11′ 19,66”E
Gravação à janela de um apartamento de 8º andar em frente à 2ª circular.
Para saber mais:
O Vizinho da Frente (5 vizinhos em 5 Fragmentos)
Ficheiros audio
O Vizinho da Frente em Lisboa
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Lisboa
LATITUDE: 38.70789889999999
LONGITUDE: -9.135365199999997