Letras de Braga: um passeio pela tipografia urbana
O presente microensaio pretende servir como um guia e registo do percurso realizado a 18 de abril de 2023, pela Letras de Braga/Velha-a-Branca, no âmbito do Seminário de Cultura Visual do CECS, que é organizado pela Passeio. O périplo, que ocorreu no centro da cidade de Braga, começou na Arcada, seguindo pela Rua do Janes, Rua de S. João, Dr. Justino Cruz e voltando ao ponto de partida pela Rua dos Capelistas.
Inscrevemo-nos no quotidiano da cidade, interagindo com as suas camadas temporais. Somos um corpo sensível, num espaço específico, impregnado de eventos com cronologias acumuladas. Caminhando, treinamos o nosso olhar para tipos urbanos mil vezes distraidamente observados nas lojas comerciais de Braga, que, por força da nossa atenção, se revelam diferentemente. O facto de não sermos um corpo individual, mas um grupo, que ao movimentar-se influencia o lugar, confere-nos uma visão condicionada ao contexto do que sucede neste preciso momento. Por tudo isto, defendemos a cidade como um espaço dinâmico de tempos justapostos, constantemente interpretada pelo presente.
Recuperamos Rosenberg (2012) para classificarmos este percurso pela tipografia urbana da cidade de Braga, guiada por Nuno Dias (Letras de Braga) e Luís Tarroso Gomes (Velha-a-Branca). Entendemos, como a autora, que a caminhada que praticamos na urbe não se define apenas como um exercício de contemplação (caminhada como uma jornada), nem tão pouco de transcendência (caminhada como encontro transformador). Antes, tentamos fazer deste passeio citadino uma forma de “negociação do espaço urbano através dos ritmos vulgares da vida quotidiana” (2012, p. 137). Chegamos com o sol ainda alto e a Arcada a fervilhar de gente e terminamos com o lusco-fusco a emprestar tonalidades oníricas aos letreiros que provocávamos com o nosso olhar, pedindo que nos esclarecessem as suas vidas, numa cidade já deserta e calma.
E o que nos dizem estes letreiros, tantos deles ainda registando a vida contemporânea, a par de outros vestígios fossilizados do que já foram? O olhar nostálgico é quase uma tendência irresistível dos lugares-memória da cidade. Descobrir esses lugares e trazê-los para o presente requer, sempre, um esforço de imaginação que não será mais do que a tessitura do pôr em comum, que cria identidades. As topologias da memória a que Crang e Travlou (1998) aludem, são construídas, precisamente, por esta justaposição de tempos num mesmo espaço, que alimentam a identidade coletiva. Por isso, o global símbolo da Benetton acumula-se (em mapas cognitivos) com o dos Armazéns Pinheiros. De técnica publicitária e de design iminentemente funcional, prática e quotidiana, a tipografia urbana molda o corpo da cidade. O néon do Café Vianna não é só um néon rosa, é um lugar simbólico, que nos redefine constantemente enquanto um grupo social.
Encaminhemo-nos, com avidez, mas sem pressa, para o encontro com a cidade.
ROTEIRO
Braga não é só bonitas esplanadas e magníficas Igrejas. Desde a icónica fachada d’A Brasileira, das letras imponentes na fachada do Theatro Circo e das letras degradadas do S. Geraldo, a letreiros desaparecidos que ainda coabitam nas nossas memórias, estas estruturas fazem parte do Património Gráfico e Visual da cidade de Braga. Contam a história da cidade, identificam e diferenciam quem nela vive.
Porém, o Património Gráfico está seriamente ameaçado pela gentrificação e a renovação sem critério das nossas cidades. Cada vez mais, com o aparecimento de franchisados, de shoppings, de lojas online e das mais diversas políticas de pretensa depuração do edificado antigo, estes letreiros e estruturas que definiram a imagem – e até o skyline – das nossas cidades e, consecutivamente, as nossas vivências urbanas, estão a ser dizimados. É imperativo documentar a paisagem visual de Braga, preservar o máximo de reclames históricos e lutar contra a tendência de homogeneização da imagem comercial e urbana que desvaloriza e faz desaparecer o comércio local histórico e com ele a memória e a identidade de cada rua. A personalidade e a paisagem urbana das cidades ficam empobrecidas e as ruas são, em muitos casos, esventradas, sem nada que lembre as formas e usos que outrora lhes deram vida.
Estes elementos gráficos e tipográficos que, depois de deixarem a fachada dos edifícios e das lojas, perdem a sua função original publicitária, mas passam a objeto de arte e ganham estatuto de Património Gráfico das cidades. Devem, por isso, ser acarinhados, preservados, salvaguardados e em alguns casos restaurados.
- Barbearia Lapa
A Barbearia da Lapa – designação antiga do largo por referência à igreja da Arcada – existe neste local, pelo menos, desde 1899. No séc. XX passou a dispor de um quiosque e, em data desconhecida, a barbearia fechou. A afixação de periódicos gerava atração permanente durante o dia e fomentava tertúlias sobre política entre os frequentadores habituais da Arcada. Em 2022 cessou a venda de publicações, apenas subsistindo a atividade de comércio de jogos de fortuna. Durante vários anos o letreiro apresentava-se incompleto em virtude de se ter partido a parte superior do vidro que o suporta. Foi restaurado no final da década de 2010.
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Barbearia e Quiosque (parcialmente desativada).
Tipo de letra e características: Tridimensional. Vidro pintado. “Sinal fantasma”, vai-se desvanecendo ao longo do tempo.
- Café Vianna
Foi fundado em 1858. No início dos anos 90 do século passado sofreu a remodelação interior, que lhe deu a configuração atual. Data dessa altura o anterior néon com uma indicação incorreta do ano de fundação. Recentemente, foi substituído pelo atual na foto, mantendo-se mais acima o néon antigo com a denominação do café.
A – Letreiro na fachada:
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Cafetaria e Restauração.
Tipo de letra e características: Sem serifa. Alto-relevo.
B – Néon no interior:
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Cafetaria e Restauração.
Tipo de letra e características: Manuscrito. Néon de vidro.
- A Brasileira
Abriu em 1907 numa parte do rés-do-chão do edifício do Largo Barão de S. Martinho. Mais tarde, passou a ocupar todo o rés-do-chão e expandiu-se para o edifício do prédio contíguo na R. de S. Marcos onde funcionava outro café. Na profunda remodelação da primeira década dos anos 2000, o letreiro desceu da guarda da varanda onde estava fixado e perdeu o fundo verde. Não é, contudo, o letreiro dos primórdios do estabelecimento ainda grafado com “z”, com outro suporte e outra tipografia.
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Cafetaria e Restauração.
Tipo de letra e características: Geometrizada, com inspiração na Art Déco. Letras em latão dourado.
- A Nova Brasileira
Abriu num edifício da esquina da R. de S. Marcos com o Largo Barão de S. Martinho construído na década de 20 do século passado. No rés-do-chão funcionou a Sapataria Fox até à abertura em 1930 d’A Nova Brasileira – o que até ao seu fecho fez com que o estabelecimento homónimo do outro lado da R. de S. Marcos passasse a ser conhecido por Brasileira Velha. Após o fecho no final dos anos 70, o edifício recebeu a loja de discos e eletrodomésticos Vadeca. Após um incêndio já nos anos 2000 o prédio foi integralmente remodelado e o antigo letreiro voltou a estar visível depois de várias décadas escondido atrás da caixa preta do letreiro da Vadeca (a toda a largura da fachada).
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Cafetaria (atualmente loja de bijuteria).
Tipo de letra e características: Ornamentada, com inspiração na Art Déco. Baixo-relevo.
- Casa Esperança
Foi fundada em 1887 no prédio do gaveto da R. do Souto com a R. de Janes. Oitenta anos depois, abriu um “salão de vendas” com galeria, oficinas e salões de exposição na R. de Janes, mantendo a loja original na R. do Souto. A casa fechou no final dos anos 90 do século passado, altura em que foi removido da fachada do edifício o letreiro antigo.
Fotografia: (Autor e fonte desconhecidos), anos 1990.
Atividade: Estabelecimento especializado em vidros e cristais, louças e sanitários, espelhos e acessórios (atualmente loja de optometria). Este letreiro já não se encontra na fachada.
Tipo de letra e características: Ornamentada. Pintura artesanal com 5m de largura. “Sinal fantasma”, vai-se desvanecendo ao longo do tempo.
- Laboratório Janes
Empresa de comércio na área da moda de luxo, foi fundada em 1982, na R. de Janes tendo depois aberto outras lojas no centro da cidade. A loja da R. de Janes foi remodelada e reabriu no final do ano de 2019 com o reclame em néon.
Fotografia: Rui Esteves da Silva, 2019
Atividade: Loja de Vestuário.
Tipo de letra e características: Sem serifa. Néon de vidro.
- Frigideiras do Cantinho
A casa foi fundada em 1797 numa altura em que o edifício original formava um canto com a cerca da Casa do Passadiço. A abertura da rua Francisco Sanches em 1949 obrigou à reconstrução do imóvel que passou a fazer esquina com o novo arruamento. Data dessa altura a afixação no gaveto do letreiro em bandeira que substituiu o anúncio pintado na fachada do prédio demolido. O letreiro em bandeira atual corresponde, porém, a uma versão mais recente.
Fotografia: Nuno Dias, 2018
Atividade: Cafetaria e Restauração.
Tipo de letra e características: “Frigideiras do” – Sem serifa / “Cantinho” – Condensada. Letreiro em bandeira, com luminosidade interior.
- Lusitana
A Padaria Lusitana foi fundada neste local em finais do séc. XIX. A enorme empena nascente do edifício serviu durante várias décadas como suporte publicitário do estabelecimento. Funcionou até à década passada como fábrica de pastelaria. Durante o séc. XX, a designação “padaria” deu lugar a “confeitaria” e a ortografia foi atualizada para “s” nos letreiros dos dois estabelecimentos.
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Fábrica de pastelaria (atualmente desativada)
Tipo de letra e características: Geometrizada. Letras em monobloco, restando só a estrutura exterior em chapa metálica.
- Lusitana – salão de chá
Em agosto de 1955 a Padaria Lusitana abriu neste edifício recém-construído o seu luminoso salão de chá com vista para o jovem jardim de Santa Bárbara. O espaço interior foi remodelado em 1986 e, de novo, na década de 2010.
Fotografia: Nuno Dias, 2018
Atividade: Cafetaria e Pastelaria.
Tipo de letra e características: Geometrizada. Letras em monobloco em chapa metálica e néon.
- Ferreira Capa
A pastelaria abriu em 1929 pela mão do empresário Manoel Ferreira Capa. Os salões interiores são da autoria de Moura Coutinho embora tenham sofrido diversas remodelações nas últimas décadas. O atual letreiro esconde o original pintado na fachada que ainda é parcialmente visível.
Fotografia: Nuno Dias, 2019
Atividade: Cafetaria e Restauração.
Tipo de letra e características: Condensada. Letras em monobloco.
- Armazéns Pinheiros
O estabelecimento abriu em finais do séc. XVIII no Campo da Vinha, mudando-se para as novas instalações na R. dos Capelistas em data não apurada. A empena voltada para o Largo de S. Francisco serviu durante várias décadas de publicidade à casa. Com o encerramento definitivo no final da década de 1990, a loja foi ocupada por uma cadeia internacional que, contudo, manteve os reclames comerciais antigos na fachada.
Fotografia: Jorge Lens, 2005
Atividade: Comércio Têxtil (atualmente loja de vestuário).
Tipo de letra e características: “Pinheiros” – Manuscrito / “Modas” – Sem serifa. Baixo-relevo.
12. Casa da Sorte
Abriu em outubro de 1933 no local atual. O extenso e colorido reclame em néon nos três pisos superiores anunciava rotativamente as várias sucursais e fascinava os mais novos. No topo do reclame existia o logótipo da empresa composto por 3 espigas. Provavelmente foi retirado, juntamente com os azulejos da fachada, na demolição do interior e remodelação geral do edifício destinada a assinalar os 60 anos de abertura do estabelecimento.
Fotografia: autor desconhecido, c. 1960 [imagem retirada de “A Casa da Sorte – Sua História no Âmbito dos Jogos de Fortuna ou Azar em Portugal”, Dias, A. Monteiro et al., Centro de Estudos Lusíadas, Braga, 2005]
Atividade: Comércio de lotaria
Tipo de letra e características: “Casa da Sorte” – Letras em monobloco em chapa metálica e néon. No topo, as diversas cidades assentes numa estrutura metálica: “Braga” – Letras em monobloco em chapa metálica e néon. Em manuscrito as restantes cidades correspondentes às sucursais (avaliação possível a partir de análise da fotografia).
Notas Biográficas
Nuno Dias: 40 anos, nasceu e reside em Braga. Licenciado em Design Multimédia pela Universidade da Beira Interior, Covilhã, onde se licenciou em 2007. Impulsionado pela sua paixão, há pouco mais de 8 anos deixou o seu emprego a tempo inteiro para se dedicar a uma vida de trabalhador independente como Designer Gráfico e Ilustrador e, ocasionalmente, desenhar uns Tipos de Letra. Foi em 2008 que publicou o seu primeiro Tipo de Letra, Origram, versão gratuita, e só em 2014 que publicou o seu primeiro Tipo de Letra comercial. No seguimento desta paixão, criou em 2016 o projeto Letras de Braga, com o principal objetivo de catalogar e documentar todo o tipo de tipografia e grafismo das ruas da cidade de Braga.
Luís Tarroso Gomes: bracarense de 45 anos e advogado há mais de 20. Nestas duas décadas dirigiu e participou em vários movimentos cívicos de luta pela preservação do património bracarense. Foi fundador e dirigente do ProjetoBragaTempo e da Velha-a-Branca. Embora não seja a sua missão principal, este Estaleiro Cultural, por múltiplas vezes, acolheu iniciativas ligadas ao património da cidade – desde o Curso de História de Braga à recolha e gravação dos mais diversos testemunhos orais. Nos últimos anos, a Velha-a-Branca tem procurado também recolher e salvaguardar espólios de alguns estabelecimentos comerciais da cidade que foram desaparecendo, tornando evidente e urgente a parceria com o projeto Letras de Braga.
Textos: Teresa Lima (introdução); Nuno Dias e Luís Tarroso (roteiro)
Publicado a 05-05-2023
Referências:
Crang, M., & Travlou, P. S. (2001). The city and topologies of memory. Environment and planning d: society and space, 19(2), 161-177. DOI:10.1068/d201t
Rosenberg, E. (2012). Walking in the city: Memory and place. The Journal of Architecture, 17(1), 131-149. DOI.org/10.1080/13602365.2012.659914
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Braga
LATITUDE: 41.5514336
LONGITUDE: -8.4222744