Jornais, pessoas e arte: da lama à esperança

No decorrer do festival Serralves em Festa, no dia 3 de junho, o átrio do Museu de Serralves, no Porto, destacava uma apresentação escultural performativa. Enchia-se aquele espaço de um hipopótamo, jornais, uma pessoa que se sentava em cima do hipopótamo a ler um jornal e outra que arrumava os jornais que saem do circuito onde a pessoa que lê o jornal, os jornais e o hipopótamo se encontravam. Hope Hippo (2005) é uma ‘escultura perfomativa’, parte da exposição Entelechy, da dupla de artistas Allora & Cazadilla. Em português, aquele nome pode traduzir-se como “hipopótamo da esperança”. Pretendendo olhar para o hipopótamo que se levanta e para a “esperança”, de acordo com a explicitação da exposição, este representa “uma espécie de torre de vigia a partir da qual um “denunciante” humano pode, enquanto lê notícias sobre o mundo, fazer soar os alarmes da injustiça”.

Indo além daquela explicação e partindo de um olhar sobre os contextos social e cultural e a sua produção de sentidos (Kress & van Leeuwen, 2021) e de discursos (van Dijk, 2017), outras interpretações se capacitam. Com este escrito, ambiciona-se, portanto, oferecer “uma visão mais ampla capaz de extrapolar, e de assim enquadrar, o entendimento do campo artístico” (Pires & Pinto-Coelho, 2021, p. 18). Tendo em conta os Estudos do Jornalismo e da Comunicação, especialmente a Semiótica Social e os Estudos Críticos do Discurso, argumenta-se a favor de uma ideia central: a ‘escultura performativa’ em causa representa uma chamada de atenção para a desvalorização das notícias, da imprensa além-noticiosa e das pessoas profissionais da área, bem como para as pessoas cidadãs e para a sua necessidade de obtenção de informação e de conhecimento, posicionamento e de intervenção.

As notícias fazem parte do quotidiano e constroem-no. Gaye Tuchman (1978) fala no seu papel de informar as pessoas sobre aquilo que são ignorantes e de construir a realidade social, o seu quotidiano. Teun van Dijk (2017) realça o seu valor de produção de discursos, na base dos quais estão os sentidos, elementos semióticos, desempenhando um papel basilar na orientação das pessoas no seu dia a dia. Dialeticamente, criam, alimentam e fazem alimentar e criar representações mentais e sociais, atitudes, comportamentos e atitudes. Situada num contexto temporal e espacial, a pessoa interage no seu quotidiano, por via da linguagem, que convencionaliza a sua experiência e que pode levar a contribuir para a mudança do quotidiano. Quanto às cidades, estando a ‘escultura performativa’ instalada na cidade do Porto e pensada inicialmente para a cidade de Veneza, qualquer uma corresponde a uma “complexa interacção de campos e sentidos, nos quais intervêm actores locais e não locais”, numa “paisagem cultural” que “está recheada de sentidos contestados” (O’Connor & Wynne, 1997, p. 196).

Levada a ler um jornal, o que faz uma pessoa sentada em cima de um hipopótamo, a lê-lo e rodeada de outros jornais, estes no chão? De acordo com os autores Kress e van Leeuwen (2021) e a sua “gramática visual”, significados que vão para além dos representacionais, que oferecem representações do mundo, ajudam a contribuir para a abordagem de vários pontos. A pessoa a ler o jornal, elevada, em foco central, e o estar rodeada de jornais que estão na “Margem” e como o que é quer “Real” e “Dado” – já conhecido, os jornais – quer “Novo” – pelo impacto que cria num espaço físico ver os jornais no chão e até saírem dos limites impostos para o circuito da ‘escultura’ – criam uma experiência de interação potencialmente convidativa à contemplação. A ‘escultura performativa’ ocupa o átrio e ocupa o espaço e o tempo das pessoas visionadoras. Com a cabeça voltada para o jornal que está aberto, a pessoa oferece uma “imagem” em jeito indiretamente apelativo, pelo que se gera uma “imagem oferta”. Outro ponto a analisar é o ângulo de tomada de vista, que é contrapicado, apontando para a demonstração de poder – o poder de ler o jornal e ter o poder de agir – e o de assumir uma posição diferenciada daquela que as outras pessoas ao redor assumem, de destaque e de invulgaridade de uma pessoa estar sentada em cima de um hipopótamo e rodeada de jornais deitados ao chão, aparentemente lidos.

Remetendo sugestivamente o cenário noticioso para o jornalismo, alguma contextualização em torno de tendências atuais do mesmo campo merece aqui abordagem. Relatórios como um do Observatório da Comunicação (OberCom) (Cardoso et al., 2023) ou estudos como o de Baptista et al. (2021) mostram como o Portugal atual dá preferência à televisão, sendo nesta que as notícias ganham maior força, ao mesmo tempo que o seu consumo via redes sociais cresce e o da imprensa física diminua. Entre outras, o trabalho de Camponez et al. (2020) revela sobre os meios jornalísticos duas tendências: uma migração para o digital, na qual a pandemia do Coronavírus com os confinamentos e os isolamentos profiláticos tiveram a sua interferência, e uma perda de circulação da imprensa física. Segundo o mesmo documento, assiste-se igualmente a uma precariedade profissional, que a mesma pandemia veio acentuar. Nas redes sociais, a aposta estratégica nos conteúdos, como que tentando captar a atenção das pessoas para o clique, a atividade e a subscrição do meio, seja jornalístico seja não jornalístico, parece prevalecer (e.g., Mattos, 2023). Com um olhar semiótico-discursivo, trabalhos de análise como o de Ribeiro (2023) mostram como podem publicações nas redes sociais de jornais produzir sentidos de dramatização, espetacularização, erroneidade e desumanização e isto ser estratégico para os meios respetivos. Como tal, suscita-se o debate sobre a qualidade do que é produzido e o sentido de responsabilidade social do jornalismo e das empresas que o sustentam. Atentando na escultura, uma nota vai para o sentido que os jornais produzem de representativos da lama da qual se ergue o hipopótamo e que ergue a pessoa, a qual lê o jornal e procura dotar-se de conhecimento para intervir no mundo. Se a lama propõe algo sujo e nocivo, também propõe toda a acumulação de conhecimento produzida pelos média e que, inerentemente, se baseia num dado contexto social e este faz com que aquele seja produzido.

Na mostra performativa, o jornal é lido, atirado para o chão e sugere evaporar-se com o vento; neste caso, uma pessoa procura mantê-lo e aos vários outros jornais no circuito da escultura. Contrastando com a profundidade da sua produção, a superficialidade do que é um jornal e dos seus usos não se realçam com esta imagem? Mais, a decadência de um jornal em suporte físico e do seu decréscimo de importância? Ainda, o saber das notícias por vias gratuitas ou aparentemente gratuitas – sendo que, por exemplo, para se aceder à Internet, há que pagar por isso – e a ilusão da gratuitidade da profissão não pode estar a levar a que algumas pessoas leiam cada vez menos? Pagar por qualidade? E o sensacionalismo, que extravasa orientações ético-deontológicas, pelo qual também se paga? As futuras gerações e a interação com equipamentos digitais e o menosprezo pelo papel? Depois, a questão ecológica: o gasto de papel e a sua inutilidade – não pode esta ‘escultura’ também alertar para tal fenómeno? Não se vai tornar um bem de nicho e encarecido de preço unitário no futuro? Como tudo o que passa a lixo e se vai decompondo com o tempo.

Por entre os jornais do chão, dois anúncios fazem-se ver, com a ocupação de uma página inteira em duas folhas diferentes. São anúncios de autopromoção, num jornal não passível de identificação. Compreende-se que pertencem ao Global Media Group, o qual contém numa folha uma promoção para subscrição da revista Women’s Health e noutra folha uma promoção para subscrição da revista Men’s Health. De ter em conta que aquele grupo se encontra, entre outras práticas, com redações ameaçadas como a do Diário de Notícias, com a redução do seu corpo de jornalistas desde 2008 ou a rádio TSF com várias vagas de despedimentos. A Women’s Health chegou inclusive a ser descontinuada em 2017, tendo regressado em 2018, com uma nova parceria. Não é só o jornalismo que dá conta da sua precariedade como o dão outras formas de imprensa, como a de estilos de vida e em suporte físico, tornando-se intensas as suas dinâmicas nas redes sociais e nos média, em que capas geram outras abordagens e até mesmo outras a partir destas últimas. Na Women’s Health, vários são os casos de pessoas celebridades representadas nas capas enquanto influenciadoras digitais e que geram atenção mediática e social, como os casos de Helena Coelho, em julho/agosto de 2020. A influenciadora despoletou um episódio na rubrica Extremamente Desagradável, denunciador de pensamentos associados ao foco de perda de peso, como o já conseguir ‘caber’ em roupa de uma determinada marca para crianças. Assim como na Men’s Health, até com celebridades com base noutros meios, como o televisivo: o caso de Fernando Rocha, humorista, na capa de setembro de 2022, foi claro quer pela sua perda de peso quer por reações do próprio que se sucederam à capa. Exemplo disto foi quando revelou estar a ser ‘afetado’ por ter sido alegadamente acusado de manipulação de fotografias nas redes sociais. Sugestivamente, tudo isto em prol de ajudar nessa tarefa de gerar atenção mediática e social e retorno financeiro, inclusive com a atração de subscrições e de potenciais entidades anunciantes de publicidade.

No meio de tudo o que é enunciado até aqui, a esperança. Robusto e demorado na sua locomoção, eis o hipopótamo, que emerge da lama, levantando quem nele se senta para ler o jornal. O hipopótamo representa uma chamada de atenção, motivando a que, por via das notícias, as pessoas olhem para o mundo e ajam nele para que ele fique mais vivível — com solidez, dedicação e atenção, como a pessoa que lê o jornal em cima do mamífero. Mas e as notícias, o jornalismo e a imprensa não jornalística, e as pessoas que para esta e o anterior contribuem? Qual esperança que se pode depositar e onde? No digital? Na Inteligência Artificial (IA), sobre a qual autorias como Chomsky se declaram céticas, declarando “um ataque ao pensamento crítico”? E o caso do psicólogo e cientista da computação Geoffrey Hilton, que deixou a Google após uma década, assustado com o futuro da IA que ele próprio ajudou a impulsionar? Jornais como o i, que conceberam uma edição quase na íntegra com o chatbot ChatGPT, não estarão a contribuir para esta lama do jornalismo?

Por outro lado, as potencialidades do jornalismo, a “esperança”. Exemplificando, é de ver como o jornalismo alerta para o que está escondido e leva a ações, como ficou claro com o caso de Alexandra Reis, ex-administradora da TAP, que acabou por pagar uma parte de uma indemnização oferecida por aquela companhia, após assumir um cargo como secretária de Estado, denunciada pelo jornalismo. Casos ainda mais complexos se podem convocar e que envolvem o jornalismo de investigação, como uma rede de charlatanismo no Gana, que alegava curar a COVID-19 com um produto bebível, denunciada por um órgão de comunicação social, e que culminou na detenção das pessoas responsáveis por essa rede (Ribeiro, 2020). Ainda, atente-se na opinião e no debate que a comunicação social fomenta. Um caso exemplificador disto foi a crónica do Expresso da ilustradora, ativista e autora Clara Não, que alerta para a libertação do corpo da mulher, mais precisamente das suas “vulvas”, que teve resposta do escritor João Cerqueira. No Nascer do SOL, numa crónica da sua autoria, o escritor afirmava que, na impossibilidade de se “mudar o mundo ou corrigir a Bíblia”, era possível “continuar a lutar contra os fedores e os fedúncios”. Os jornais ajudam também a oferecer oportunidades de discussão, sobre os mais variados assuntos, capacitando intervenção, agregando diferentes vozes e apelando a diferentes públicos e promovendo ora mais ora menos a sua inclusão.

Fica a sugestão oferecida pela dupla de artistas, pela arte: as pessoas ainda podem chamar a atenção para estes e outros fenómenos ameaçadores do mundo como um lugar onde se possa existir e coexistir, pois a realidade social constrói-se dialeticamente. A arte entra em contacto com as pessoas, quando com ela interagem, concretiza-se performativamente – mesmo que não seja encarada como performance – e traz à tona de uma realidade social tantas outras realidades que, dentro dela, se cruzam. Em linha com Berger e Luckmann (1966/2010), a objetividade e a subjetividade coexistem e constroem a realidade. Responde-se, por conseguinte, à proposta inicial: Hope Hippo, se traz esperança, traz também o lado lamacento do jornalismo, da imprensa não jornalística e das condições que as pessoas profissionais da imprensa vêm, panoramicamente falando, enfrentando. Procurar e encontrar a esperança é apenas um início: enfrentá-la é um desafio acrescido, com o qual muitas redações se deparam, sobretudo em tempos de monetização e de uma monetização voltada para o digital, com grupos empresariais que vão desvalorizando inclusive o papel e sobrevalorizando o digital.

Allora & Calzadilla proporcionam, assim, uma obra de arte que despoleta reflexões múltiplas, evidenciando-se, desta forma, a sua riqueza semiótica e discursiva, bem como a riqueza daquilo que as cidades podem oferecer e a que podem incentivar. É de sublinhar que, apesar de datada de 2005 e por via do que aqui se deixa escrito, a obra é enquadrável no panorama da atualidade, neste caso, da imprensa. Tendo a exposição em que se insere começado em maio, Serralves apresenta até outubro do presente ano esta ‘escultura performativa’. A partir dela, podem criar-se oportunidades – sendo a interação com a arte uma oportunidade desde logo, considerando o seu potencial comunicacional vasto – e, no meio dos jornais que se atiram para o chão, a esperança pode erguer-se. Sobretudo com a ação das pessoas, informadas, com sentidos crítico e autocrítico, capazes de intervir socialmente para incentivar a sociedades melhores quer para as atuais quer para as gerações futuras.

Texto e imagens: Pedro Eduardo Ribeiro*

Publicado a 16/06/2023

*Estudante de doutoramento de Ciências da Comunicação, da Universidade do Minho, e investigador doutorando do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS).

Este trabalho contou com o apoio de uma Bolsa de Investigação para Estudantes de Doutoramento [BI_Doutoramento/FCT/ CECS/2021 (UI/BD/151164/2021)], da Fundação para a Ciência e Tecnologia, ao abrigo do Protocolo de Colaboração para Financiamento do Plano Plurianual de Bolsas de Investigação para Estudantes de Doutoramento, celebrado entre a FCT e a Unidade de I&D CECS (UID 00736).

Referências

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Camponez, C., Miranda, J., Fidalgo, J. Garcia, J. L., Matos, J. N., Oliveira, M., Martins, P. & Silva, P. A. (2020). Estudo sobre os efeitos do estado de emergência no jornalismo no contexto da pandemia covid-19. Relatório. Sopcom. http://hdl.handle.net/10451/44291

Cardoso, G., Baldi, V., Couraceiro, P., Vasconcelos, A., & Paisana, M. (2023). Públicos e mercados de media 2023. Perfis e grupos sociodemográficos dos consumidores de notícias em Portugal. OberCom – – Observatório da Comunicação. https://obercom.pt/publicos-e-mercados-de-media-2023-perfis-e-grupos-sociodemograficos-dos-consumidores-de-noticias-em-portugal/

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