Encontro com a poética de uma ruína, no Mercado Duque de Bragança

Logo acima do teatro angrense, numa lateral da Rua da Sé, a via principal da cidade, deparo-me com uma inscrição na parede, com letras de caixa alta onde pode ler-se “MERCADO DUQUE DE BRAGANÇA. DESDE 1836. ANGRA DO HEROÍSMO. SEGUNDA A SEXTA – 7:00>16:00 SÁBADO – 7:00<14:00”. Ao lado, a imagem do Duque, exibindo, do tronco para cima, vistosas medalhas ao peito, e ao fundo, na sua contiguidade, um painel de azulejos, em tons azuis e brancos. Ainda antes de entrar no recinto, é o súbito encontro com os signos da história que nos acolhe. Descoberta em 1427, Angra desempenhou um indubitável papel estratégico ao longo do tempo, tendo sido a primeira localidade nos Açores a ser elevada a cidade, em 1534. Catapultada a curiosidade sobre a referência ao Duque, a pesquisa posterior haveria de me elucidar que este, designado Duque da Terceira e sétimo duque de Vila Flor, António de Sousa Manuel de Menezes Severim de Noronha, filho ilegítimo do rei, havia sido condecorado em 1832 com a mais elevada distinção nobiliárquica, em virtude da resistência dos liberais que fomentou e liderou na ilha.

Já lá dentro, percebe-se que afinal o marcador temporal que na entrada nos puxa para o passado é acompanhado de abundantes índices compondo uma imagem-tempo alegórica, os quais, simultaneamente, antecipam no presente o futuro, em aproximação aos termos benjaminianos (1974/2004; 2021). É com desalento que rapidamente se descobre que as entranhas do mercado são já uma ruína que prenuncia uma inevitável, ou mesmo catastrófica, mudança. Ou seja, apercebo-me assolada por um sentimento de melancolia, que nada mais é que a consciência de uma inevitabilidade materializada de forma não imediata, por meio de imagens que tensionam o passado-presente-futuro, na recusa do tempo homogéneo, linear e da história progressiva. A melancolia de que falo é, precisamente, a sensação de que as nossas vidas, mesmo as pessoais, são atravessadas pela história, mais uma vez à maneira do pensamento de Benjamin, entrando em colisão com um futuro que é irrupção no presente, choque, mudança subitamente pré-enunciada. Assim se podem ler as bancas vazias (numa terça-feira a meio da manhã, noutros tempos altura de intenso frenesim, conforme nos conta posteriormente uma comerciante local, de uma loja nas proximidades), os panos de sarapilheira que cobrem as bancas esvaziadas quais sudários a cobrir sepulcros, as lojas e oficinas laterais que se encontram encerradas, ainda que com mercadorias cristalizadas lá dentro, antevistas através dos vidros, evidenciando os sintomas de um mercado que se encontra em fase avançada de ruína. Os clientes são praticamente inexistentes. Encontro ainda assim duas bancas de legumes que ali resistem. Numa delas, a vendedora esclarece que a banca é da mãe, proprietária da mesma há volta de trinta e um anos. Têm produção agrícola na Praia da Vitória. Estufas. É o que ali vendem, pelo que diz, salvo alguns produtos, que à mistura revendem quando ainda não colheram os da época. É assim com as batatas e as cebolas. A mesma vendedora avança dizendo que a maior parte das comerciantes já eram idosas, acabando por aceitar uma indemnização e ir para casa. Largaram as bancas em virtude do projeto que em breve irá dar lugar a profundas obras de remodelação: “A nós não nos perguntaram nada. Apenas sabemos que terá um parque de estacionamento subterrâneo e mercado no primeiro andar, além de parte de lazer e diversão, com espaços modernos. Depois poderemos candidatar-nos aos novos espaços, mas a maioria já não volta”.

Vagueando pelo mercado, nos escritos dos letreiros e sinalética vejo a contaminação do carácter poético que os transforma, já, em vestígios abandonados de um tempo perdido (registando em alguns casos os nomes dos proprietários), materializado na constelação de uma espécie de fragmentos soltos que, por força da saudade antecipada que inspiram, parecem enredar-se como se de inusitados versos se tratasse: “Talho Garcia”; “Banca do Coelho”; “Produtos da Nossa Terra”; “Instituto São João de Deus – Casa de Saúde São Rafael – Atelier ‘Fazemos por nós’”; “Banca 33. A Chave. Café e Pastelaria”; “Produtos diretos. Banca 02”; “Banca da Joaninha. ‘Temos feijão novo congelado’”; “Antiguidades do Fanfa. De António Fanfa. Loja 36”; “Charro e cavalas. 3 kg 5,00 €”; “Peixaria Silveira” (dentro, na parte acima e abaixo do balcão pode ler-se, respetivamente: “E um caldo de peixe?”, “Ideal para domingos à noite!”); Frutaria Jorge Mateus. De Jorge Henrique A. Vieira. Banca 07”; “A louça e os tarecos da minha avó. Loja 30”; e ainda “Loja dos Biscoitos. Loja 38”. Na sinalética, exibe-se frequentemente a imagem do Duque de Bragança (“DB”) pendurada, assim como bandeirolas com padrões alusivos aos azulejos azuis e brancos.  E já em tons pardacentos, descobre-se uma fotografia, encaixilhada e pendurada na parede de uma das bancas, recortando uma largada de toiros.

Já mais tarde, em conversa com uma lojista local, sou informada de que a troca comercial de produtos agrícolas e gado se realiza agora aos domingos, na Praça do Gado, fora do centro de Angra: “Vou muito cedo e compro para toda a semana. Mais legumes do que fruta, que aqui ainda não é a altura”. Pela descrição, é uma feira muito concorrida e localiza-se numa Praça, daí a designação. Sobre o projeto do novo mercado, impera o pessimismo: “Aqui as pessoas resistem muito à mudança. Valorizam o que é seu”.

Numa cidade que é património da Unesco, com todas as fachadas imaculadamente cuidadas, o mercado é um corpo dissonante, votado ao abandono e ao descuido. Ainda assim, a sua assumida inscrição no tempo histórico leva-me, a partir da referência ao Duque de Bragança, a descobrir indícios da historicidade do lugar, na sua imbricada relação com a importância estratégica e política não só de Angra, como da ilha. Importará, pois, notar que a Terceira se encontrava na rota do caminho marítimo para a Índia e Brasil, tendo nomeadamente servido de ponto fundamental de trocas comerciais. Em 1499, Vasco da Gama terá passado por Angra quando regressava da sua primeira viagem à Índia, motivado pela urgência de salvar o seu irmão, Paulo da Gama, que viria a morrer moribundo no único hospital das ilhas, o Hospital da Misericórdia, conforme relatam as fontes históricas e testemunha a estátua em frente ao largo da atual igreja com o mesmo nome, assim como os relatos da guia que durante duas tardes me acompanhou pelo território. Acresce que já em 1831, tendo D. Pedro abdicado da coroa brasileira a favor do seu filho, D. Pedro II, e viajado para Portugal, para reunir forças e comandar a fação liberal, terá desembarcado na Terceira e ali permanecido. A ilha tornou-se, assim, numa espécie de quartel general das forças liberais. Ainda antes, em 1829, na Praia da Vitória, então baía da Vila da Praia, tivera lugar uma batalha naval entre as forças liberais e a armada miguelista que intentara o desembarque (Veiga, 2023; Enes, 2019; 2023).

De volta ao Mercado, depois da breve explanação histórica que aqui se descreve e o mesmo estimula, já na porta de saída, as mesmas inscrições e imagem do DB (Duque de Bragança), replicadas, revisitam-me. Dou comigo a indagar sobre o sentido de uma tal insistência, em ambos os pontos de entrada/saída, qual estratégia que visa garantir as amarras do lugar ao espírito do tempo (Zeitegeist) que ali habita, como diria Hegel (2006/2023) ou mesmo Butor (1963).

 

Angra do Heroísmo, 26 de março de 2024.

 

Texto e imagens: Helena Pires

 

 

Referências

Enes, C. (2019). Angra do Heroísmo. Alma e Memória. Município de Angra de Heroísmo.

Enes, C. (2023). Temas de história açoriana. Letras Lavadas.

Benjamin. W. (1974/2004). Origem do drama trágico alemão (tradução de João Barrento). Assírio & Alvim.

Benjamin, W. (2021). Rua de sentido único. Crónica berlinense. Infância berlinense por volta de 1900 (tradução de António Sousa Ribeiro). Relógio D’Água.

Butor, M. (1963). O espírito do lugar. Arcádia.

Hegel, G. W. F. (2006/2023). Introdução à história da filosofia. Edições 70.

Veiga, F. B. (2023). Companhia de Jesus. O breve regresso no reinado de D. Miguel. Edição de Autor.

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Açores

LATITUDE: 38.6635375

LONGITUDE: -27.2293969